A esquerda bem informada
A esquerda bem informada

Marco Albertim

Menção honrosa dos Prêmios Literários da Cidade do Recife, com o livro Um presente para o papa e outros contos. Integra as antologias de contos Recife conta o Natal e Panorâmica do conto em PE.
Os operários de Ingrid

A nudez de Ingrid fora imaginada por todos nós. Nunca o dissemos. Tínhamos medo de infringir a disciplina; e, mais ainda, não queríamos nos expor a censuras com base nos cânones da luta de classes. Nesse caso, ora… ora, seríamos exprobrados como refugos da peleja; inda que carregássemos a peleja íntima de absorver o vernáculo sem lesões de Ingrid, sem reparar na robustez de suas coxas.

Chacina

A esplanada da usina amanheceu como todos os dias. A terra seca, cinzenta, nua de seixos, com sulcos largos e vazios, cobriu-se de umidade. Às cinco da manhã, o sol não desponta inteiro. O lusco-fusco adensa-se, emprenha-se do cheiro avinagrado do canavial recém-queimado.

Memória do holocausto

Ele sentou-se na cadeira de uma das mesas para abrigar-se da chuva. A chuva ajudou-o a manter o disfarce. Com pouco mais de um metro e meio de altura, ainda com os cabelos fartos de fios pretos e grisalhos, é difícil para ele manter um disfarce. Já tem 68 anos e o desleixo desproveu-o da arcada dentária superior.

O bueiro da fábrica

A única rua onde se vê o muro lateral da fábrica chama-se rua do Curtume. Lá, há quarenta anos, cabras e bois eram abatidos. O tempo não fez justiça à principal atividade do lugar, batizando a rua de rua do matadouro ou do abatedouro. Os anos homenagearam os couros e peles dos animais, expostos em varais paralelos, dias seguidos, até que ficassem devidamente curtidos.

A história da eternidade

No filme de Camilo Cavalcanti, tudo está em combinação. O enredo convém ao cenário inóspito de terra seca, povoado sombrio e acomodações toscas. As capturas do fotógrafo Beto Martins, atentas, dão fulguração dramática em planos abertos que não deixam escapar a subjetividade de cada personagem.

Cheiros no cais

O Cais de Santa Rita à noite é tão deserto quanto povoado de calungas. Seus moradores não andam, movem-se como defuntos saídos de cada túmulo, esgueirando-se entre paredes, agachando-se no chão; para não terem a feição alumiada, de modo a tornar visíveis as chagas. O relógio que cada um tem no juízo encolhido, dá conta das vinte horas; é uma hora tocaiada, espreitada em leitos de papelão, de panos ralos e polpudos dos miasmas do chão.

Recolhos da memória

Na última noite de agonia, Alcebíades Lira, tendo ao lado de sua cabeceira a filha mais velha, apontou para a porta do quarto e disse:

– Mamãe e Geraldina estão ali. Vá falar com elas.

Sêmens de luto

Ele atravessou a sala do velório com os passos tão bambos quanto fora sua vida nos últimos dois dias. É certo que tinha um defeito nas pernas, e isso o tornava tão característico quanto os óculos de lentes grossas no nariz anguloso; além da barbicha e o bigode ralos e bastos. Fora sempre percebido porque sabia juntar aos petrechos do rosto, a voz cava, de sonoridade limpa. Mas o pai estava morto, estendido no caixão com cravos brancos nos lados, nos extremos.

Dois amigos

Há amizades que se interpenetram de tal modo que se fundem feito uma liga de metais. Mas mesmo numa liga de aços, as moléculas se atritam. O que dizer de dois amigos que, fundindo os sentimentos num só, absorvem-se nas substâncias e, por isso mesmo, repelem-se de modo surdo? Ivam Marisco e Marconi Martinho conhecem-se há mais de sessenta anos.

Carnaval vermelho

O carnaval de Olinda não sorve autocríticas; ao contrário, adensa-as, porque as ladeiras abocanham as pernas para lembrar que o passeio tem um custo. Este custo é esquecido pelo folião de classe média; não tarda, também ele prostra, preocupado apenas em se ver livre da fadiga. Mas há um folião que se deixa absorver pelo frevo, pelo sol e pela expectativa de que em breve deixará escorrer o próprio sêmen, como num ato de recuperação da cidadania que lhe fora tomada.

Carnaval vermelho

O carnaval de Olinda não sorve autocríticas; ao contrário, adensa-as, porque as ladeiras abocanham as pernas para lembrar que o passeio tem um custo. Este custo é esquecido pelo folião de classe média; não tarda, também ele prostra, preocupado apenas em se ver livre da fadiga. Mas há um folião que se deixa absorver pelo frevo, pelo sol e pela expectativa de que em breve deixará escorrer o próprio sêmen, como num ato de recuperação da cidadania que lhe fora tomada.

Ao lado da ponte

Todas as manhãs, somente de um lado da cabeceira da ponte, fazia sombra. Do outro lado, o sol incidindo, o canto permanecera deserto, sequer percebido. O capim ali estorricara, uma chusma escassa de formigas contorcia-se lenta entre os grãos grossos de areia. Inda que fosse o lado do casario com esquina para o rio, ninguém se dispunha a se escorar no anteparo da ponte, para uma prosa miúda.

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