Pesquisa traz retrato do impacto da pandemia em moradores de favelas

Entre os dados mais dramáticos está que mais da metade ficaram sem trabalho e não conseguiram fazer distanciamento social. A percepção da violência doméstica, da depressão e do consumo de drogas também aumentou.

Mesmo durante a pandemia de covid-19, os moradores de favelas do Rio de Janeiro conviveram com tiros, operações policiais e falta de acesso aos serviços básicos de saúde. A falta de água fez parte da rotina de 37% desta população e 63% ficaram sem água em algum momento da pandemia. Apenas 26% possuem emprego com carteira assinada e 54% perderam o emprego no período.

Os dados são da pesquisa Coronavírus nas Favelas: a Desigualdade e o Racismo sem Máscaras, lançada nesta segunda (27) e que traz como subtítulo “Uma análise favelada sobre como a pandemia amplificou o histórico de violações de direitos humanos na Cidade de Deus, no Complexo do Alemão e no Complexo da Maré”.

O estudo foi realizado pelo coletivo Movimentos, formado por jovens de diferentes favelas da cidade, com apoio do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC). O levantamento mostrou os impactos da covid-19 nos moradores dessas favelas nas questões socioeconômica, violência, acesso à saúde e saúde mental. O relatório completo está disponível na página do coletivo.

Covid-19

O relatório aponta que o desestímulo às medidas preventivas por parte do presidente Bolsonaro, a falta de coordenação da crise a nível federal e o atraso para começar a campanha de vacinação contra o Sars-CoV-2 amplificaram os efeitos nocivos da pandemia nas favelas. Para o coordenador do Movimentos Ricardo Fernandes, morador de Cidade de Deus, na zona oeste do Rio de Janeiro, a situação só não foi mais grave devido às redes de solidariedade que ser formaram nos territórios.

“Além de construir uma potente rede solidária para suprir a ausência do Estado, os jovens das favelas discutem impactos da política de drogas em seu cotidiano, e produzem dados para que a sociedade conheça a realidade que vivemos sob a perspectiva de quem nasce, cresce e mora nesses lugares, que são alvo de várias violências do poder público.

Na data em que foi realizada a pesquisa, a cidade do Rio de Janeiro registrou em torno de 18% de sua população infectada. Dentre as favelas pesquisadas, o Complexo da Maré, com 22,6 %, tem um percentual maior que a média de infectados do Rio de Janeiro. Dos 159 que afirmaram ter pego o vírus, 56% apontaram não ter conseguido fazer o isolamento social.

O relatório revela que a média de pessoas por cômodo das casas das favelas é de três moradores, o que amplia a possibilidade de contágio dentro das residências e dificulta o isolamento social. Além disso, 54% não conseguiram fazer isolamento pela necessidade de sair para trabalhar, o que foi relatado por 55% dos respondentes.

Sobre a covid-19, 55% afirmaram morar com pessoas pertencentes a grupos de risco; 93% conhecem alguém que teve covid-19; 73% souberam de alguém que morreu da doença; 24% fizeram o teste para detectar a covid-19, sendo que entre os que tiveram sintomas, apenas 45% conseguiram fazer um teste.

Entre os entrevistados, 37% dos que precisaram de atenção médica não conseguiram atendimento em equipamento público de saúde e 14% dos que precisaram de atendimento médico recorreram à rede particular de saúde. Desse total, 40% das pessoas afirmaram ter consumido algum tipo de remédio por conta própria e apenas 4% disseram ter usado ivermectina e hidroxicloroquina como tratamento precoce à covid-19.

Violência

A pesquisa aponta que a política de drogas é utilizada para justificar a invasão cotidiana e violenta feita nas favelas. A coordenadora do Movimentos MC Martina, moradora do Complexo do Alemão, na zona norte da cidade, lembra que cotidianamente essa população sofre violação dos direitos humanos e tem seu direito de ir e vir cerceados.

“Existe, já há muito tempo, um genocídio em curso contra a população favelada no Brasil. Mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF) proibindo operações policiais em favela durante a pandemia, vimos o que aconteceu em Jacarezinho: um verdadeiro massacre ao povo preto e pobre”.

Desde junho de 2020, as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro devem ocorrer apenas em ocasiões excepcionais e precisam ser comunicadas ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), em razão da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas.

Isso não impediu que elas continuassem ocorrendo nas favelas do estado, inclusive com muita violência, como a do Jacarezinho, em 6 de maio, que resultou em 28 mortos, sendo um policial. De acordo com levantamento do MPRJ, entre 14 de junho do ano passado e 20 de setembro desde ano, ocorreram 663 operações em favelas do estado, principalmente na Região Metropolitana e na Baixada Fluminense.

De acordo com a Secretaria de Estado de Polícia Militar, as operações realizadas pela Corporação estão “rigorosamente alinhadas ao que preconiza a ADPF 635 do Supremo Tribunal Federal (STF)”. “Além de ser comunicado previamente, o Ministério Público estadual recebe relatórios sobre os resultados das operações, como pode acompanhá-las em tempo real por meio de um aplicativo desenvolvido com essa finalidade”, informa a secretaria.

A pesquisa divulgada hoje aponta que 83% das pessoas que responderam a pesquisa ouviram tiros de suas casas durante a pandemia; 69% presenciaram ou tomaram conhecimento de operações policiais na favela em que vivem; 73,8% sentem que houve aumento de casos de violência doméstica, com 40% tendo presenciado algum episódio; 47% sofreram algum episódio de racismo ou discriminação na vida e 16% sofreram racismo durante a pandemia;

Racismo e adoecimento mental

Os dados apontam a relação entre o racismo sofrido e o adoecimento mental, já que 63% das pessoas que sofreram racismo na pandemia desenvolveram algum nível de depressão e 82% expressaram o desejo de experimentar novas substâncias psicoativas. Entre as substâncias, o álcool foi o mais citado por 45% das respostas pessoas, seguido por remédios de venda controlada (19%), cigarro (18%), inalantes psicotrópicos (16%) e maconha (12%).

Outro coordenador do Movimentos, Aristênio Gomes, morador do Complexo da Maré, na zona norte, afirma que o racismo estrutural e a desigualdade social do país se refletem também nas vítimas da pandemia no Brasil. “A pesquisa mostra que as vítimas da covid-19 são, majoritariamente, pessoas pretas, pobres e periféricas”.

Na área de saúde mental dos moradores das favelas, a pesquisa revelou que 76% dos respondentes tiveram algum distúrbio do sono; 43,1% tiveram algum nível de depressão; e 34% vêem a ansiedade como um sentimento mais presente na pandemia. Também foram citados tristeza, medo, pânico, pensamentos negativos, dores, depressão e palpitação acima da média.

Condições socioeconômicas

O estudo apontou que, no Brasil, pessoas de baixa escolaridade têm taxas de mortalidade três vezes maiores (71,3%) do que das pessoas com nível superior (22,5%). Nas favelas analisadas na pesquisa, apenas 16% dos participantes disseram ter ensino superior. Sobre o desemprego, a situação foi relatada por 26,8% da população não branca e 30% estão em trabalhos informais.

Entre os respondentes, 62% solicitaram o auxílio emergencial oferecido pelo governo federal, mas apenas 52% receberam o benefício; 50% solicitaram doações e, dentre esses, 56% receberam ajuda; 36% das pessoas ajudaram arrecadando ou fazendo doações.

A pesquisa continha 55 perguntas, divididas em cinco eixos temáticos. As respostas foram colhidas por meio de formulário on-line e foram contabilizados 955 participantes.

Da Agência Brasil

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