Duelo entre o “Consenso de Washington” e o “Consenso de Pequim”
Com a volta dos desastres da receita do Fundo Monetário Internacional, já bem visíveis na Argentina e no Equador, volta também a lembrança do “Consenso de Washington”, de triste memória para a América Latina.
Por Osvaldo Bertolino
Publicado 06/10/2019 02:16
O termo “Consenso de Washington”, formulado em 1989 pelo economista inglês John Williamson, ficou famoso na década de 1990. Ele designava as dez medidas recomendadas por instituições internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) para “reformar” países em desenvolvimento. O mundo vivia os tempos da derrocada do “socialismo real” e a direita ressurgia com força, maldizendo e atacando as variações progressistas que governavam em diferentes regiões do planeta.
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Entre as medida do “Consenso de Washington” estavam o “ajuste fiscal” para enrijecer a dotação orçamentária que estabilizaria a macroeconomia do mercado dos títulos públicos, por meio de arrochos violentos nos investimentos sociais e em infraestrutura; câmbio flutuante, para submeter as moedas nacionais ao sabor da variação do dólar; privatização selvagem; eliminação de regulações pelo Estado, como legislações sociais e trabalhista; e abertura comercial e financeira. Tudo isso passou a ser chamado de “projeto neoliberal”.
Esse "Consenso" nunca foi um consenso. Nem mesmo entre os economistas de direita. Como lembrou João Pedro Caleiro, editor-assistente de economia do site da revista Exame, estudos de professores como o do economista Dani Rodrik decretaram que o resultado das medidas havia sido decepcionante. Segundo Celeiro, William Easterly, um economista norte-americano que já passou pelo Banco Mundial e hoje é professor na New York University, estava neste grupo dos céticos, mas após analisar os dados mais recentes chegou a uma conclusão oposta.
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Em um estudo publicado recentemente ele escreveu que “a decepção inicial com reformas na África e na América Latina foi possivelmente prematura, tanto porque não havia ocorrido reforma o suficiente, tanto porque não havia dados suficientes disponíveis sobre o pós-reforma”. Ainda de acordo com Celeiro, o trabalho chega a três conclusões gerais. A primeira é que os resultados das políticas econômicas melhoraram muito ao redor do mundo desde os anos 1990.
Ele cita o exemplo da inflação, um problema endêmico na América Latina. Em 1991 quase todos os países da região tinham taxas anuais acima de 20%, com vários ultrapassando 40%. A segunda conclusão é que estas melhoras estão estatisticamente correlacionadas com o crescimento econômico, e a terceira é que o crescimento se recuperou fortemente na África e na América Latina após as “décadas perdidas” de 1080 e 1990, segundo o estudo, de acordo com a citação de Celeiro.
Agenda neoliberal
Mas ele levanta uma dúvida crucial: apesar da correlação entre “reformas” e resultados positivos, não é possível provar causalidade, se foi o “Consenso de Washington” que causou a melhora ou se foi algum outro processo ou fator. Celeiro afirma que Easterly — o professor na New York University — escreve que da mesma forma que o pessimismo anterior foi exagerado, os novos dados devem no mínimo levar a uma revisão do senso comum.
Ele também traz uma lição sobre reformismo que é relevante para o Brasil: “Quando novas reformas são anunciadas com tanto alarde como foi o Consenso de Washington, há pressão para avaliar o seu resultado o quanto antes. Isso pode levar ao que esse estudo documenta, que é um pessimismo prematuro antes que o processo esteja completo e antes que haja dados suficientes pós-reforma.”
De acordo com o professor, “estudos posteriores podem mostrar que esse pessimismo estava errado, mas naquela altura já há muito menos interesse em avaliar as reformas”. “Isso explica porque é tão difícil fazer reformas e porque correções são sempre adiadas diante de resultados extremamente ruins das políticas.”
Ao contrário das dúvidas do professor, um artigo publicado na revista trimestral Finance & Development, do FMI, diz que o neoliberalismo não entrega o que promete. “Parece que os benefícios de algumas políticas que são parte importante da agenda neoliberal foram de certa forma exagerados”, disse a publicação, assinada por três membros do setor de pesquisa da instituição (o vice-diretor Jonathan D. Ostry, o chefe de divisão Prakash Loungani e o economista Davide Furceri).
Círculo vicioso
Eles dizem que o próprio termo “neoliberalismo” costuma ser mais usado pelos seus críticos do que por seus proponentes. Segundo os autores, o aumento do comércio tirou milhões da pobreza, o investimento estrangeiro direto transferiu tecnologia para os emergentes e as privatizações melhoraram a eficiência de muitos serviços. São afirmações que precisariam de confirmações, mas é possível dizer que esses benefícios não são exatamente resultados do “Consenso de Washington".
No mesmo artigo, também citado por Celeiros, eles dizem que dois pilares neoliberais deixaram a desejar. O primeiro foi a remoção dos limites para a liberdade de capitais, que teoricamente permitiria que fluxos financeiros encontrassem seu uso mais produtivo em nível global. “Isso é até verdade no caso do investimento direto, mas não com capitais especulativos de curto prazo, que têm impacto negativo em termos de mais volatilidade, maior frequência de crises financeiras, aumento da desigualdade e ciclos de expansão e quebra”, avalia Celeiros.
O segundo pilar analisado é o da diminuição do tamanho do Estado por meio do corte dos níveis de déficit e dívida. “É certamente o caso de que muitos países (tais como os do Sul da Europa) não tem muita escolha além de se engajarem na consolidação fiscal, porque os mercados não permitem que eles continuem pegando emprestado. Mas a necessidade de consolidação em alguns países não significa todos os países”, diz o texto.
Como lembra Celeiros, para nações com histórico fiscal de “responsabilidade” (a rigidez orçamentária do mercado de títulos públicos), o custo de reduzir rapidamente o endividamento pode ser alto demais, já que o aumento de impostos e o corte de investimentos necessários para essa tarefa podem gerar um círculo vicioso de desigualdade e redução do crescimento. "Nesse caso, uma boa opção é pensar em como mitigar o impacto sobre os mais pobres", afirma o texto da revista do FMI.
Pesquisa sobre a China
Lógico que essas divergências não fogem ao escopo ideológico dos think tank do neoliberalismo. Também é óbvio que para eles outras fontes de explicações para as dúvidas — e mesmo certezas — sobre os fatos apresentados não devem ser consideradas. Esse projeto nasceu com pretensões à univocidade. Mas existem outros pontos de vista que explicam melhor esse cenário.
Em oposição ao “Consenso de Washington”, por exemplo, surgiu o "Consenso de Pequim". Com ele a China evitou a explosão do desemprego e manteve seu Produto Interno Bruto (PIB) crescendo com índices robustos, ao contrário dos países que adotaram o neoliberalismo. A designação surgiu de um artigo do ex-colunista do The New York Times, Joshua Longo, em 2004, que se converteu numa publicação do Centro Europeu para a Pesquisa sobre a China, criado pelo então premiê britânico Tony Blair.
Havia uma previsão de que o “Consenso de Washington” caminhava para o seu final — prognosticado inclusive pelo Nobel de Economia Joseph Stiglitz —, estimulado pelo sucesso da experiência chinesa. A China provava que, ao contrário da pregação dos neoliberais, era possível, sim, manter por um longo período uma taxa de crescimento sustentável sem produzir uma forte pressão inflacionária.
O êxito chinês — e mesmo dos países do Sudeste Asiático que se recuperam da crise de 1997 — tem tudo a ver com seu estilo próprio de gerir a economia, bem diferente dos cânones do “Consenso de Washington”. A mão do Estado induzindo o crescimento e uma declarada política industrial fundada na inovação tecnológica, somadas a uma densa política educacional, fazem toda a diferença. Por tudo isso, a China passou a ser vista como ameaça na competição econômica mundial — condição bem visível nos termos da guerra comercial e tecnológica movida contra aquele país pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Mundo mais chinês
Um estudo de 2017 da Price Water Coopers aponta que a China, em termos econômicos, poderá ultrapassar os Estados Unidos em 2030. Em livro intitulado Quando a China mandar no mundo, seu autor, Martin Jacques — ex-editor da revista Marxism Today, do Partido Comunista do Reino Unido —, afirma que aquele país “não aspira governar o mundo, porque crê estar no centro do mundo, sendo este o seu papel e posição naturais”. “E esta atitude irá provavelmente ser reforçada à medida que se tornar uma importante potência global”, diz ele.
O obra rejeita o pensamento convencional da ascensão da China. Seu impacto não será apenas econômico, mas também cultural. “O ocidente espera que a riqueza, a globalização política, transformem a China num bom gigante. Mas Martin Jacques diz que isso é uma ilusão. O tempo não tornará a China mais ocidental; tornará o ocidente, e o mundo, mais chineses”, diz uma matéria da revista inglesa The Economist sobre o livro.
Os chineses entendem que, tanto do ponto de vista econômico como geopolítico, quanto mais eles puderem ajudar outras nações a se fortalecerem, melhor será o mundo para a China. Segundo disse o consultor norte-americano Joshua Cooper Ramo, a China também aprendeu com os erros da América Latina no seu período neoliberal.
Por encomenda do governo, a Academia Chinesa de Ciências Sociais publicou, em 2004, um livro chamado Análises do neoliberalismo. A obra, uma compilação de artigos de respeitados acadêmicos chineses, escrita sob um ponto de vista marxista, considera a Rússia e a América Latina como áreas do "desastre" do neoliberalismo. Um dos capítulos trata das vítimas latinas das “reformas” neoliberais.
No Brasil, elas ganharam impulso em 1994. O então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (FHC), anunciou em rede nacional de rádio e televisão que estava assumindo o seu comando. Ele pediu ao Congresso Nacional para aprovar as medidas do “Consenso de Washington”. Era, na verdade, o início da sua campanha à Presidência da República. E foi assim que ele conseguiu aprovar o Fundo Social de Emergência (na prática, uma desvinculação parcial de recursos da área social para criar uma reserva monetária que serviria de garantia à “estabilização”). O resultado dessa aventura é bem conhecido.