A história continua: Fukuyama e as causas do avanço da extrema direita
Expoente do neoliberalismo, ele lamenta crise da democracia, mas insiste em tese que alimenta a luta de classes.
Por Osvaldo Bertolino
Publicado 21/05/2019 13:02
Em entrevista à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) no Chile, Francis Fukuyama, que ficou famoso após a publicação da obra O fim da história e o último homem, na década de 1990, comenta seu novo livro, Identidades: a exigência de dignidade e a política do ressentimento. Ele diz que que vê com preocupação o avanço da ultra direita, do nacionalismo e dos “populismos”, uma ameaça à democracia liberal, acompanhada do livre mercado. Em seu livro anterior, Fukuyama disse, para justificar a sua tese, que, com o colapso do "socialismo real", o mundo havia encontrado sua forma mais razoável de organização social.
Neste, ele tenta explicar, conforme dito na entrevista, como líderes autoritários, ou que se descrevem como apolíticos, se conectaram melhor com as classes trabalhadoras do que os movimentos de esquerda, e por que certos grupos tradicionalmente dominantes, como os brancos nos Estados Unidos, hoje reivindicam uma condição de "vítimas". “Acredito que nos anos 2000 as duas grandes catástrofes que aconteceram foram, primeiro, a invasão americana no Iraque e, depois, a crise financeira, e ambas foram o subproduto de ideias conservadoras que foram levadas ao extremo e levaram a resultados muito ruins”, comenta.
A democracia liberal
Sua tese é de que, depois da crise financeira de 2008, quando o apoio aos “populismos” de esquerda deveria ter aumentado, o que foi obtido, pelo contrário, foram “populismos” de direita, cuja narrativa explicava melhor a situação econômica das pessoas da “classe média”, dizendo, por exemplo, que a elite, permitindo altos níveis de imigração, conspirava para tomar seus empregos. Para Fukuyama, há uma “tendência natural” de que todos querem ser reconhecidos como iguais e os considerados inferiores ficam muito indignados. Ele cita que “muitas pessoas brancas nos Estados Unidos que ouviram histórias de vitimização de afro-americanos, de mulheres, de gays e lésbicas”, acreditam que “essas pessoas estão recebendo algum privilégio”.
Esse cenário, diz Fukuyama, criou a diminuição do apego à democracia, considerada por ele “muito perigoso”. “Acho que o que aconteceu é que há uma grande decepção com a qualidade do governo em muitas democracias, particularmente em relação à questão da corrupção, porque às vezes a democracia é a cura para a corrupção, mas às vezes é também a fonte da corrupção”, diz ele, complementando que “muitas democracias não são capazes de prestar um serviço público de maneira efetiva”. “Foi assim que as coisas começaram no Brasil: foi um protesto pelos ônibus e pelo preço das passagens, e pela corrupção nos serviços de São Paulo. A partir daí surgiu um movimento político para acabar com a corrupção que mais tarde se viu envolto em uma luta entre a esquerda e a direita. Foi isso que levou Jair Bolsonaro ao poder: a percepção de que toda a elite política no Brasil era altamente corrupta”, avalia.
Esse conceito de “elite” é a base da análise de Fukuyama. Para ele, “é perigoso” a tendência de desprezar as elites, porque qualquer sociedade precisa delas, “ou de pessoas com a educação e as habilidades para fazer com que a sociedade funcione”. “A elite precisa estar conectada com o povo. Então, nesse sentido, acredito que a democracia ainda é uma ideia muito poderosa e continua a ser a principal ideia para nos organizarmos politicamente hoje no mundo”, conclui.
Aristóteles e a lei do valor
Um documentário intitulado A mão invisível do Estado, produzido no início dos anos 1990 por um grupo de jornalistas e pesquisadores liderados por Raimundo Pereira, explica a alma desse conceito de Fukuyama. A ideia parte do princípio de que a liberdade é um dos mais caros conceitos humanos. “Não há nada mais precioso do que a liberdade e a independência. Mas existem interesses muito grandes em tentar separar a liberdade de outro conceito sem o qual a liberdade simplesmente não existe: o conceito de igualdade. Para existir a liberdade, precisa existir a igualdade”, diz Raimundo Pereira na apresentação do vídeo.
Essa discussão é antiga, explica o documentário. A rigor, ela começou com Aristóteles e seus estudos sobre a lei do valor. Foi Aristóteles, o maior pensador da antiguidade, que descobriu, há mais de dois mil anos, que as mercadorias têm dois valores: um valor de uso e um valor de troca. Aristóteles dizia que mercadorias de valores de uso diferentes podem ter valores de troca iguais. Cinco camas, valem uma casa, dizia ele. A troca existe porque há uma medida de igualdade, escreve Aristóteles. As camas e a casa permitem uma medida de igualdade.
Mas o que objetos tão diferentes como camas e casas têm de igual? Aristóteles se pergunta, sem conseguir responder. A resposta só viria no final do século XVIII, com David Ricardo. O que há de igual nas camas e na casa, objetos de valores tão diferentes, diz Ricardo, é o trabalho humano envolvido na produção dessas mercadorias. E por que Aristóteles não conseguiu descobrir que o trabalho humano é a medida da igualdade do valor?
Maximização dos lucros
Marx responde, em O Capital, a grande obra de crítica à economia clássica, que Aristóteles era um filósofo de uma sociedade baseada no trabalho escravo. A compreensão da igualdade do valor de todos os trabalhos humanos só pôde existir quando a escravidão do mundo antigo e a servidão do mundo medieval foram superadas — a partir do momento em que a igualdade política entre os homens se firmou. O patrão é igual ao operário. O latifundiário é igual ao camponês. Foi a Revolução Francesa que proclamou essa verdade-síntese, essa verdade política fundamental: todos os homens são iguais.
Sem essa premissa, como defende Fukuyama, o mundo teria de ter estagnado nos primórdios da Revolução Francesa. Como disse o economista clássico inglês Adam Smith — citado no documentário A mão invisível do Estado — , considerado o pai do liberalismo, em seu livro Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações, publicado em 1776, uma ação benfazeja resulta da livre concorrência de todos os capitalistas, uns contra os outros. Para ele, a mão invisível do mercado, a busca do interesse de cada um, equilibra a sociedade. Se os produtores de mercadorias se associam em cartéis e trustes não pode haver liberdade de mercado, disse o próprio Adam Smith. Os empresários não deveriam sequer frequentar o mesmo clube para evitar a tentação de se associarem em monopólios, recomendou.
Essa ideia liberal cedo foi suplantada pela tendência da maximização dos lucros. O que Fukuyama chama de “populismo” — segundo Norberto Bobbio, trata-se de uma manifestação política que tem o povo como inspiração, sem obedecer a uma ''elaboração teórica e orgânica sistemática'' — é uma fuga da realidade. A tendência do capitalismo, de brutais desigualdades de renda e consequentemente de luta de classes, conduz a regimes autoritários. O agravamento da crise do sistema iniciado em 2007-2208, como lembra o próprio Fukuyama, tem a ver com essa tendência.
Crise do Estado de bem-estar social
O problema, como disse o filosófico de Roland Corbisier sobre seu livro Filosofia e Crítica Radical, é que as classes dominantes e conservadoras estão impedidas de apreender a realidade dialeticamente sob pena de deixar de serem dominantes e conservadoras, porque reconhecer que a realidade é dialética, contradição, movimento, metamorfose ou transformação, é assinar a sentença da própria morte. Essas classes são conservadoras de si mesmas e lutam por sua sobrevivência como setores dominantes — uma condição que perderiam se países como o Brasil rompessem definitivamente com as ideologias do pré-Revolução Francesa.
Esse diagnóstico serve também para a crise do Estado de bem-estar social na Europa. Entre 1950 e 1970, diz o historiador Eric Hobsbawn, o mundo viveu seus anos de ouro: o desemprego manteve-se em níveis relativamente baixos, a expectativa de vida aumentou, a produção de alimentos e bens manufaturados quadruplicou. Foi também o período em que os trabalhadores obtiveram suas maiores conquistas no mundo capitalista — em grande parte, embaladas pelos ventos que sopravam de Moscou —, inimagináveis pelo proletariado europeu descrito por Karl Marx e Friedrich Engels no século XIX. O Estado de bem-estar social foi concebido para injetar compaixão no capitalismo.
O que Fukuyama defende é a originalidade do princípio liberal que criou os ideais republicanos, como democracia, direitos individuais, liberdade de expressão. Ele gerou, entre outras coisas, os sistemas políticos modernos, o conceito de igualdade entre os cidadãos e o advento de governos contratuais e eleitos. Mas a questão, como pontua Roland Corbisier, é a dialética desses ideais. Como eles conviveriam hoje com a dinâmica das nuvens de capitais rentistas que vagam pelo mundo e se multiplicam fazendo arbitragens a partir das mudanças de cotações de moedas, mercadorias, títulos de dívidas e todo papelório inventado pelos financistas internacionais?
Regime de Augusto Pinochet
Fukuyama é contemporâneo de Milton Friedman, um dos papas do neoliberalismo, que ganhou o Prêmio Nobel de Economia em 1976 e liderou a corrente que se opôs ao pensamento de John Maynard Keynes e à social-democracia. Seu pensamento influenciou fortemente líderes políticos como o ex-presidente norte-americano Ronald Reagan e sua contemporânea, a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Suas ideias também serviram de inspiração para a onda antissocialista. Vaclav Klaus, que mais tarde se tornaria o primeiro-ministro da República Tcheca, foi um dos que seguiram as lições de Friedman na construção de um novo modelo econômico para as ex-repúblicas socialistas.
Para Friedman, qualquer ideia de regulação é uma coisa diabólica, socialista. Ele era a favor até da extinção do Fundo Monetário Internacional (FMI) porque, em sua visão, seus empréstimos retardam a velocidade de “ajustes necessários”, estimulam a persistência de políticas equivocadas e falsificam a percepção de risco dos bancos credores. Um dos resultados mais notáveis dessa tese é o regime do general Augusto Pinochet, que já no início da década de 1970 implantou as ideias de Friedman no Chile. Esse dilema também está presente nas eleições da União Europeia, quando cerca de 200 milhões de pessoas irão às urnas nos 28 países-membros. A extrema direita se apresenta no processo como uma força política e ideológica considerável.
O conceito de democracia não é universal, absoluto, isolado no tempo e no espaço. Ele está condicionado a muitos outros fatores, basicamente relacionados à produção e à distribuição de riquezas. Uma sociedade democrática deve alargar ao máximo o leque de possibilidades individuais e garantir um lugar digno a cada um. As ideias de Fukuyama podem ter valor como um dos contrapontos ao avanço da extrema direita, mas são, no fundo, uma abstração, com pouca relação com a realidade objetiva do mundo. Ele advoga um ideal que produz uma sociedade de intolerância social e de pessoas autômatas. Por aí vem o fascismo.