Carlos Quintão: O regime da enfiteuse
Parte 1
“A terra de marinha está para ser ocupada e trabalhada pelos brasileiros, porque ao patrimônio coletivo pertence, e só uma politica de ampla e larga visão salvará do rolo compressor da ocupação milionária da especulação imobiliária.” Rosita de Souza Santos Terras de Marinha- Ed Forense RJ/1985.
Por Carlos Quintão*
Publicado 09/10/2013 11:21 | Editado 13/12/2019 03:30
Como é de nosso conhecimento: “A história de nosso País começa com um paradoxo, antes de descoberto o Brasil, suas terras já pertenciam a Portugal”. Pois quando Cabral aqui aportou, nossas terras já pertenciam a Portugal fruto do Tratado de Tordesilhas, em 07 de junho de 1494.
Esta afirmação só pode ser estendida sob a ótica daqueles que dominaram pela força os povos indígenas então habitantes de nosso território, quando não dizimaram nações inteiras, e impuseram o “seu direito” ao direito dos índios.
No entanto, é fundamental ressaltar neste debate, que a experiência jurídica e a tradição lusa, sempre asseguraram às populações o franco acesso às praias, ao litoral e, muito especialmente, aos mangues, para a busca de lenha e alimentos.
Já em 1677, as Ordens Religiosas no Rio de Janeiro, intentaram apossar-se das marinhas, mangues e salgados, privando de seu uso a população da cidade, o que culminou numa violenta polêmica fundiária com a intervenção do Conselho Ultramarino e a promulgação da Carta Régia de 04 de dezembro de 1678, declarando os mangues de propriedade pública.
Sendo este fato a 1ª manifestação sobre o domínio público das marinhas ou terrenos de marinha e seus acrescidos (terrenos das praias) no Brasil, no qual, costumo hilariamente comentar, que este fato, é o primeiro caso da “Bolsa Família no País”.
De acordo com os entendimentos políticos deste: a colônia, o reino, o império e a república, jamais em tempo algum até a atualidade, foi alienado, o “domínio pleno” de terrenos de marinha e seus acrescidos. Sendo que para a sua utilização foi, desde tempos imemoriais, usando o regime da enfiteuse ou aforamento, conforme legado pelo Direito Romano.
No direito brasileiro, terreno de marinha é definido pela primeira vez através da Instrução nº 348, de 14 de novembro de 1832, criada pela falta de clareza do art. 51, inciso 14, da Lei Orçamentária de 1831 – que punha a disposição das Câmaras Municipais, os terrenos de marinha, para logradouros públicos, e na Corte e Províncias, poderão ser aforados a particulares tais terrenos que julgarem convenientes, estipulando segundo for justo o foro, mesmo aos que já tenham sido edificados sem a concessão.
Na Instrução nº 348, de novembro de 1832, eis o que ficou definido no seu art. 4º: “Hão de considerar-se terrenos de marinha todos os que, banhados pelas águas do mar ou dos rios navegáveis, vão até a distância de 15 braças craveiras (unidade métrica a época que representa hoje 33m), para a parte da terra, contadas estas desde os pontos a que chega o preamar médio do ano de 1831”. Daí por diante, a terra de marinha apareceu sempre como elemento gerador de uma renda registrada nas leis orçamentárias, e passaram ao controle do Ministério da Fazenda, que arrecadava os foros, determinava seu justo valor, o controle, a fiscalização e a regularização das situações que fossem encontradas em tais terras.
Com a Ordem nº. 280, de 20 de junho de 1863, os cartórios de notas, não podiam transferir terrenos de marinha e seus acrescidos, sem a transcrição do conhecimento do laudêmio, que é uma receita patrimonial referente à transação onerosa de transferência do domínio útil (aforamento) ou da ocupação de imóvel da União, no qual ao alienante ou cedente, é submetido à cobrança da alíquota de 5% (cinco por cento) do valor atualizado do domínio pleno do terreno da União e das benfeitorias nele construídas. Poucos sabem, mas laudêmio é devido ainda mesmo que não haja contrato enfitêutico.
A Independência acentuou o ódio a tudo que fosse da Coroa, a República aguçou o mesmo sobre toda a propriedade da nação imperial. As terras de marinha agora sob domínio da República, que passou a enfrentar vários Estados que pleiteavam a propriedade das marinhas.
Só com a histórica Sentença em 1905, a Suprema Corte proclama que terrenos de marinha não são próprios nacionais, e muito menos poderiam ser terras devolutas, acolhendo a tese do Procurador-Geral da República que afirmava que terra da marinha é um bem nacional, sempre inalienável e imprescritível.
Portanto, terreno de marinha mesmo que esteja incluído em qualquer propriedade, nem por isso deixa de conservar o seu caráter e sua sujeição à respectiva Legislação Patrimonial da União, e a sua inclusão em qualquer escritura de alienação de outros terrenos é inoperante e substancialmente nula, por ser ilegal e inexistente para todos os efeitos jurídicos.
Tanto no Código Civil de 1916 e no Novo Código Civil de 2002, dispõe que terrenos de marinha e seus acrescidos regulam-se por lei especial, cuja enunciação e conceituação, estão dispostas no Decreto – Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946.
Neste Decreto – Lei, seu art. 1º, inclui os terrenos de marinha e seus acrescidos como bens imóveis da União; o art. 2ª, alíneas a, b, § único, conceitua sucessivamente que: São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831; os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés; os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés; e que, para os efeitos deste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.
O mesmo Decreto – Lei conceitua em seu art. 3º que: São terrenos acrescidos de marinha os que se tiverem formado, natural ou artificialmente, para o lado do mar ou dos rios e lagoas, em seguimento aos terrenos de marinha, e no art. 4º conceitua como terrenos marginais os que banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até a distância de 15 (quinze) metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, contados desde a linha média das enchentes ordinárias.
A CF/88 promulga em seu Art. 20, inciso VII, como bens da União os terrenos de marinha e seus acrescidos, e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, dispõe no Art. 49, § 3º que: “a enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima”.
*Titulo Original: O regime da enfiteuse / aforamento em terrenos de marinha e seus acrescidos ausentes na Reforma Urbana – Parte 1
*Carlos Quintão é Membro do PCdoB – Niterói.