Saddam Hussein: um julgamento justo?
Na última semana o ex-ditador do Iraque foi condenado à morte na forca por um Tribunal Especial em Bagdad. Além dele, seu meio-irmão e comandante da poderosa e temível Mukhabarat – o Ministério da Informação, responsável pela vigilância e perseguição de o
Publicado 13/11/2006 10:30
Saddam Hussein nasceu 28 de abril de 1937, poucos anos depois de Churchill, num só fim de tarde num hotel no Cairo – tendo como conselheiro o Coronel Lawrence (conhecido como Lawrence da Arábia – ter decidido criar um novo país: o Iraque. Muitos historiadores, então, trataram a decisão de Churchill como um capricho: o país não possuía fronteiras definidas ou sequer um núcleo social e étnico homogêneo, reunindo populações que jamais haviam vivido juntas.
Este novo país, que poucas vezes havia existido na história como entidade política autônoma (fora sempre dividido entre babilônios, ao sul, e assírios ao norte e depois conquistado por gregos, persas, árabes e em fim pelos turcos até 1919. Neste mesmo ano as províncias turcas – villaret – de Mossul, Bagdá e Basra passaram, por definição da Liga das Nações, para o Império Britânico. Já naquele momento o petróleo – principalmente para os navios da frota britânica – já define o interesse ocidental, além do ser o país, até então denominado de Mesopotâmia, ponto fundamental da rota britânica para seu Império das Índias (via Gibraltar, Malta, Chipre, Suez, Aden, Iraque e daí para as Índias (hoje Paquistão e União Indiana).
Contudo, após uma rápida revolta dos árabes, os ingleses perceberam o alto custo da manutenção do país, provocando uma resposta brutal: a aviação inglesa usava o Iraque como um campo de provas para esta nova arma e Sir Winston Churchill não teve qualquer pudor em usar armas químicas para derrotar a revolta nacionalista árabe.
Um rei fantoche – Faiçal, da família hachemita originária de Meca e presumivelmente o último descendente do Profeta Mohammed, foi indicado – sob pressão do Coronel Lawrence – para governar a velha Mesopotâmia.
A monarquia, comprimida entre a dependência frente aos ingleses e o nacionalismo árabe, foi finalmente derrubada em um banho de sangue em 1958. A República instalada era frágil e marcada por conspirações e golpes, até que o presidente Abd al-Karim Qasim é derrubado e morto em 1963. A grande força que surge no cenário político do país passa a ser o Partido Baath (“Renascimento” em árabe), que se inspira largamente no presidente nacionalista do Egito, Gamal Abel Nasser. O Baath toma o poder, em fim, 1968, iniciando um amplo programa de reformas e modernização do Iraque, incluindo-se aí a nacionalização da Iraq Oil Company, até então sob controle britânico.
O Partido Baath ostentava um programa de ações socializantes, secular – fortemente anti-religioso – afastando da vida pública os inúmeros líderes religiosos muçulmanos e atraindo cristãos e laicos para o governo. Além disso dedicava grande ênfase na unidade árabe e muita energia na condenação de Israel, considerado um enclave colonial do Ocidente no Oriente Médio. Entre os homens que ascendiam ao poder com o Baath estava o jovem Saddam Hussein, responsável pela segurança interna – quer dizer, pela repressão aos opositores – a criação de milícias autônomas em relação às FFAA, de cuja lealdade desconfiava intensamente.
Saddam: um ditador cruel
Saddam talvez fosse, no fundo, um dos críticos da “loucura de Churchill”. Sabedor das fragilidades do país, da ausência de uma historia comum que avalizasse a existência do Iraque como unidade política unificada, buscou dois caminhos de garantia para viabilizar o país. De um lado, como sempre o fazem os ditadores, manipulou e usurpou a história para justificar a existência do Iraque. Da antiguidade trouxe Hamurabi e Nabucodonozor como “precursores” do Iraque moderno, numa licença histórica de vastas proporções. Da Idade Média árabe re-inventou o Califa Al-Rashid como um “iraquiano”, apropriando-se de um dos mais importantes momentos da herança comum de todos os árabes. Mais tarde, nem isso bastará: irá construir a imagem de tais líderes como seus próprios antecessores. De outro lado, realista e prático, construiria mecanismos eficazes e ferozes de repressão política, como a Mukhabarat, a Guarda Republicana e as tropas Feddayn.
Do ponto de vista social aproximar-se-á intensamente da pequena classe média urbana, dos camponeses e beduínos – todos árabes e sunitas, constituindo com estes não (mais de 20% da população do Iraque) uma forte base de apoio social e político. Várias vezes, para escárnio do socialismo do Baath, assumirá a imagem dos beduínos do deserto – valentes, fortes e guerreiros – para construir a figura de chefe militar (e não de um político reformador).
Do ponto de vista de outros países árabes – exceto Síria e Egito – o Iraque sob Saddam Hussein (ele tornar-se-ia vice-presidente em 1968 e depois presidente 1979) avança na modernização dos costumes. Torna-se o único Estado de todo o Golfo Pérsico a possuir um sistema judiciário, proíbe a aplicação da Sharia – o código de justiça islâmico – e libera as mulheres, que passam a usar roupas ocidentais, ir à universidade, trabalhar fora de casa e, em fim, assumem importantes cargos na estrutura de poder do país.
Os recursos advindos do petróleo são amplamente utilizados para propiciar a esta minoria sunita condições de vida cada vez mais confortáveis, além, é claro, de premiar os grupos clânicos de beduínos que estruturam o apoio do regime, como os Al-Tikriti, de sua terra natal.
As demandas de participação política e de real distribuição dos recursos advindos do petróleo são respondidas com ferocidade. Os curdos, ao norte do país, são constantemente combatidos, presos e brutalmente torturados. As massas xiítas, em especial ao sul do país, são excluídas de qualquer participação política e viviam muito abaixo das condições sociais de seus conterrâneos sunitas. Muitas vezes a exclusão e a discriminação traduzem-se em humilhações e espancamentos, como nos casos rotineiros dos jovens recrutas xiítas nas mãos dos comandantes militares sunitas.
O Fim de um reinado de sangue
As ambições de Saddam Hussein não se restringiam a manter o Iraque unificado sob mão de ferro. Saddam ambicionava ainda um papel central de controle do Oriente Médio e de liderança do Mundo Árabe. Neste sentido, desencadeou a terrível e inútil guerra contra o Irã dos aiatolás, que se arrastaria entre 1980 e 1988, matando 300 iraquianos e 400 mil iranianos, além de devastar os dois países.
Em vários momentos da guerra o barbarismo constituiu-se em regra, como no uso maciço de gases venenosos por parte do Iraque, ou nas ofensivas de massa dos garotos iranianos sobre os campos minados pelo Iraque. A uma tentativa de aproveitar-se do caos gerado pela guerra para alcançar sua autonomia, a revolta protagonizada pelos curdos foi respondida por brutal uso da força aérea e de gases venenosos. Comprovadamente, em 1988, Saddam ordenou o uso de armas químicas contra a aldeia curda de Halbja, matando 5000 pessoas, a maioria mulheres e crianças.
Mal terminava a Guerra Irã-Iraque, Saddam lança-se outra aventura sangrenta: a invasão do Kwait, em 1990. Após uma breve guerra em 1991 – Operação Tempestade no Deserto, sob patrocínio da ONU e liderada pelos Estados Unidos – o Kwait é restaurado. O Iraque perde 100 mil soldados e 7 mil civis, enquanto 30 mil kwaitianos são motos.
Mesmo sob sanções da ONU, com seu comércio controlado e bloqueio de contas – que custará ao país cerca de 300 mil mortos, a maioria de crianças por falta de medicamentos e de alimentos – Saddam mantém uma postura desafiante e brutal. A Revolta dos xiitas, em 1991, é respondida por brutal repressão, gerando mais de 30 mil mortos. Entre estes estão os casos comprovados que levaram Saddam a condenação á morte nesta última semana.
Mesmo enfraquecidos e isolados Saddam é, em 2003, um tirano perigoso e cruel.
2003: Mais uma guerra…
A decisão norte-americana de fazer uma guerra para livrar-se de Saddam Hussein, sob pretexto de ter ligações com o terrorismo fundamentalista – logo ele, um secularista radical! – ou produzir armas de destruição em massa (já descartadas na derrota de 1991) ou em nome dos direitos humanos, já passou para a história ou, talvez, para a lata de lixo da história. A derrota de Bush e seus neo(?)conservadores, nas eleições desta semana, mostram que a rejeição a Saddam Hussein foi acompanhada por uma correspondente rejeição os métodos do governo americano promover a democracia no mundo.
Uma pesquisa recente feita John Hopkins University, e publicada na revista científica “The Lancet” avalia, até outubro de 2006, em 655 mil mortos decorrentes da invasão americana no país. Assim, a liberdade duradoura prometida aos iraquianos já custou um mar de sangue para este povo.
O julgamento de Saddam Hussein deveria ser o coroamento da imposição de tal liberdade e não foi por acaso que o Tribunal Especial criado para julgá-lo, divulgou a sua sentença de morte apenas dois dias antes das eleições americanas. A Administração Bush já havia usado o mesmo estratagema anteriormente. Em 2004 o anúncio de um pretenso ataque à bomba aos túneis de Nova York, ao lado da divulgação de um discurso ameaçador de Bin Laden, desequilibraram a balança em favor de Bush e contra John Kerry. Desta feita, contudo, a condenação de Saddam não foi suficiente e o principal arquiteto da guerra, Donald Rumsfeld, perdeu seu emprego.
Além disso, para muitas entidades de direitos civis a imposição – fácil e diária – da pena de morte pelo novo governo “democrático” do Iraque (mais de 3000 condenações depois do início da guerra) é um escândalo. Mesmo no caso de Saddam – um notório tirano digno das piores narrativas de Mil e Uma Noites – o julgamento foi eivado de irregularidades. Dois advogados de defesa – Adel al-Zubeidi e Khamis al-Obeidi – foram assassinados, malgrado a solicitação de garantias feitas poucos dias antes dos assassinatos. Um outro teve que abandonar o país, após um atentado… Nos dois casos os ataques foram feitos por homens vestindo uniformes da polícia…
Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).