Meu primeiro 25 de Abril em Portugal
Hoje, depois de sete meses vivendo no Norte de Portugal, amanheci em meu primeiro 25 de abril, vivenciado enquanto brasileira imigrante. Já tinha me dado conta que o dia seria intenso, havia feriado anunciado, cartazes por toda cidade com eventos distintos, todos com o mesmo tema; celebrar abril.
Por Manuella Bezerra de Melo*
Publicado 25/04/2018 14:05
Há muitos anos desenvolvi uma rotina neste dia. De alguma forma, de onde quer que esteja, resgato as memórias da Revolução dos Cravos. Claro que minhas memórias demasiado jovens não alcançam momentos empíricos do dia exato que o povo Português, há 44 anos, conquistou sua democracia, derrubou o Estado Novo e, junto com ele, o fascismo da ditadura mais extensa de toda Europa. Mas reativo as músicas, as imagens e a história num exercício inspirador e necessário, numa esperança de levar para o outro lado do oceano os valores de abril.
Ao desembarcar do ônibus no centro da cidade de Braga, recebi meu cravo vermelho. Dezenas de pessoas passaram distribuindo cravos pela rua, mas seu José parou, olhou-me nos olhos, sorriu, entregou-me o cravo e me abraçou. Seu José tem 75 anos e é militante socialista desde 1974. Todos os anos sai de casa com o alvorecer do 25 de abril para distribuir cravos pelas ruas. Mas não foi só cravos que ele me deu. Ao perceber que eu era brasileira, seu José me deu outro abraço. Apertou com firmeza minhas duas mãos com suas duas mãos enrugadas e contou o quanto lamenta pela ferida que o Golpe de 2016 fez na nossa democracia, e o quanto percebe que estamos sofrendo por isso até agora. Eu disse a seu José que, como ele, também era socialista. Ele me abraçou pela terceira vez, pra finalizar dizendo-me que eu não desista até que triunfemos. Minha militância solitária imigrante não se conteve, tomou-se vibrante e emocionada, enquanto isso aquelas pessoas distribuíam e recebiam os cravos num ritual festivo que fala e valoriza a importância da democracia e da conservação do Estado Democrático para um povo que ultrapassou a fome, a miséria, a guerra, a repressão, e conquistou a liberdade.
Presenciar tão vivo e quente esse 25 de abril de 1974 em pleno 2018, lembra-me das funções e tarefas de cada um de nós, e me acorda pra necessidade de ter a paciência histórica que, provavelmente, teve seu José. Com a pressa de quem nasceu no seio dessa geração acelerada, ansiosa e líquida, não podia imaginar ver a democracia brasileira se exaurindo e repetindo o erro de dar vez ao fascismo, ao preconceito, a intolerância e a ignorância. Mas também com o olhar de quem está enxergando tudo de dentro, consigo deste meu ângulo perceber que entre as muitas coisas que são necessárias resgatar no Brasil, uma delas é a subjetividade.
Não é a toa que, repetidamente, quando avança um projeto fascista, entre as primeiras medidas está a criminalização da arte e dos que a produzem. O ultra-capitalismo tira de todos nós os momentos macunaímicos, engana a gente e nos coloca tarjas de compra e venda, nos arranca a capacidade de ler contextos, de observar as entrelinhas, as figuras de linguagem da vida, aquilo que tem por trás, pelos lados ou nas bordas; nos automatiza e fecha nossas lentes, incapazes de observar lírios do campo ou os cravos de abril. Para ver os cravos e perceber seu poder simbólico é preciso saber o que são cravos, por quem foram plantados, onde foram plantados, em qual solo plantou-se. É preciso saber que cravos e lírios não são iguais, que um gosta de sol e outro de sombra, e saber ler uma palavra além da palavra. E isso, é a literatura e a arte quem dá essa condição a uma sociedade.
O pesquisador uruguaio Angel Rama explicava em Literatura, Cultura e Sociedade na América Latina que ‘a classe dominante costuma apresentar e dar acesso apenas àquilo que lhes é oportuno, e foi esta a cartilha seguida no Brasil “confinando a produção a modos operativos, a concepções de vida e, às vezes, a recursos literários longamente recorrentes no desenvolvimento de uma literatura” (Rama, 2001:224). Portanto, com mais força que anteriormente é preciso que a literatura, com seu olhar subjetivo porém atento, desenvolva e apresente narrativas que quebrem essa hegemonia e forje as nacionalidades e identidades pela perspectiva do povo, do trabalhador, das mulheres, dos negros, dos índios, dos homossexuais, e disputar na unha a ocupação desse espaço literário com a cansativa e falaciosa narrativa opressora ocupada em invisibilizar discursos que ponham em cheque sua posição de poder.
Em Portugal, a estafa do Estado Novo rendeu décadas de produção literária de resistência até a gloriosa cadência do regime. Poetas de todo País e de várias gerações dedicavam-se a denunciar o aparelho repressivo e narrar os sentimentos do povo em relação ao aprisionamento de viver sob o céu da mais longa ditadura fascista da Europa, assim como apresentar os desejos de nova aurora. Isso acontece com recorrência em todo lado. Onde há opressor, há oprimidos. Mas há os que se entregam e os que resistem, dispostos a apresentar novas respostas estéticas para reinterpretar o mundo.
Pra ampliar os espaços que debatem as relações entre literatura e sociedade, essa coluna nasce no agora, neste abril vivo do além-mar que inspira todos nós, brasileiros, a espantar pra longe os abutres. Nos mares Sul do Atlântico há algo devastador acontecendo, a democracia deixou de estar somente ameaçada e o Brasil já vive um ambiente de exceção, instabilidades e incertezas. Mas novas reflexões literárias e discursivas brotam das sementes plantadas por todas as Marielles renascidas antes mesmo que fosse executada a própria Marielle, morta porque representava uma voz forte de quebra da hegemonia narrativa desse Brasil branco, falocêntrico e sem representatividade, que enfrentava essa conversa-mole mal contada pra boi dormir. Se a literatura conta a história de um povo e de uma nação, que seja, portando, contada pelo seu povo livre e diverso, plural e heterogêneo; porque a força da palavra importa mais do que a própria palavra, e é isso que viemos fazer aqui.