Publicado 24/04/2018 12:38
Pé de ferro & outros poemas, de Adalberto Monteiro, tem uma grande virtude: traduz literariamente, em versos, os fragmentos de poesia que o poeta flagra no dia a dia e registra em sua memória, e os partilha, com arte, neste livro notável.
Fragmentos colhidos no Parque do Carmo, em São Paulo e suas cerejeiras (em Hanami Matsuri), que dão ao vento suas pétalas, indo “ao infinito, impregnadas de desejos e sonhos”.
Ou lembram uma menina jogada na Praça da República (em À boca da República), descalça mas de meias, numa elegância pobre e suja (“mas não imunda”), com um “fragmento de vaidade” e sua “raiz de dignidade”, tentando sobreviver apesar do pânico e do medo.
Memória com a suavidade quase de um haikai, em Orquídea: “Ela entrou na minha vida, / Delicadamente… / Arrombando porta / Com beleza e sedução.”
Há também épicos como a emoção revoltada e inconformada de Dê um grito contra a matança em Gaza!, onde o sangue no rio Jordão não é mais o das ovelhas sacrificiais mas dos meninos revoltados, alvejados pelas armas do exército opressor de Israel.
Há uma mistura de épico e lírico no poema que dá título ao livro, Pé de ferro, em que o poeta escarafuncha a memória em busca da “presença de meu pai em mim.”
Em meio a esta coleção de fragmentos em forma de versos, chamo a atenção para a união permanente, na poesia de Adalberto, do encantamento com as coisas belas, de braços dados com o espanto diante da maldade e da insensibilidade capitalista, indicando o sonho de uma vida melhor e mais justa e a luta por ela.
Lá está, por exemplo, a denúncia do domínio do utilitarismo capitalista que não se curva diante do belo, do humanamente útil e da natureza. O registro está no poema Havia um abacateiro… Uma denúncia prosaica e simples da força da grana que ergue e destrói coisas belas, como já disse outro poeta, Caetano Veloso.
Um abacateiro cresceu, oferecendo flores, frutos, sombra e beleza, no jardim de uma agência bancária. Mas, “desavisadamente Desastradamente Imprudentemente”, um galho seu escondeu a logo marca do banco. Crime fatal, sentenciado como doença que levou à punição implacável: a árvore “Deve ser sacrificada”.
Este pequeno poema com ressonâncias épicas e líricas, que distinguem a arte sem precisarem ser ditas, pois despertam a sensibilidade e a percepção, provocando a reflexão. Está ali, clara e nítida a denúncia do domínio sobre a natureza, o belo, o humanamente útil, exercido pelo capital.
A janela através da qual o poeta olha o mundo revela que o útil para o capital é apenas aquilo que está a seu serviço. O abacateiro tornou-se obstáculo desde que seu galho impediu a visão da logo marca do banco. Que, como toda peça de propaganda, deve sempre saltar à vista de todos. Por isso, por este crime, foi sacrificado. Mais que inútil, tornou-se um obstáculo, disfuncional, ante a empáfia capitalista cujo brilho passou a ofuscar.
O abacateiro e seu galho se assemelham, mal comparando, aos trabalhadores cuja atividade deixa de atender completamente às imposições do capital, perdendo por isso seus empregos. São cortados, inexoravelmente, como aquela árvore que “ousou” tornar invisível um símbolo do capital. Não servia mais e foi sacrificada.
Ao trabalhar com suas lembranças, o poeta Adalberto Monteiro poderia repetir os versos de Drummond, no poema Memória, e dizer: “as coisas findas, / muito mais que lindas, essas ficarão”.
Pé de ferro é uma antologia de coisas muito mais que lindas – as que provocam o pensamento e tocam em múltiplas cordas do coração do leitor.
Poema
Havia um abacateiro…
Era uma árvore jovem e bela.
Já florava.
Já carregava frutos.
Enfeitava o jardim De uma conceituada casa bancária.
Soava bem aquela fruteira,
Ali à entrada.
Acontece que desavisadamente
Desastradamente
Imprudentemente
A juventude da planta
Fez crescer um galho
Que se pôs a ocultar
A logomarca da impoluta Casa.
Soube-se depois
Que um laudo
De um probo fiscal
Sentenciara:
– Devido a uma “doença grave,
Deve ser sacrificada”.