Publicado 05/12/2014 10:29 | Editado 04/03/2020 16:26
Sentença popular assegura o justo pagar pelo pecador. A máxima encaixa-se perfeitamente no fardo carregado, ao longo dos anos, pelo cidadão Joaquim Rodrigues dos Santos, estabelecido com um bric-a-brac de inutilidades no Joaseiro do Padrinho Cícero. O que em nada alteraria o rumo das coisas não fosse ele a controvertida e folclórica figura de Seu Lunga, o sucateiro que não levava desaforo pra casa e tinha sempre uma resposta desconcertante na ponta da língua para perguntas capciosas que lhe dirigiam. Como a clássica indagação se toda aquela quinquilharia de sua casa era para vender.
De certo tempo para cá, tudo que se dizia de jocoso por este sertão de meu Deus, uma resposta desaforada, uma sentença eivada de rancor, um depoimento ferino… tudo, tudo mesmo, era debitado na conta da verve deste sertanejo criativo e de inteligência arguta que, aos poucos, foi se acostumando a definir a vida através de suas tiradas recheadas de humor e sabedoria.
Seu Lunga, enfim, descansou dessa trabalheira, arriou a sobrecarga penosa, livrou-se da pecha de filósofo maldito, rabugento e casmurro. Passara a vida inteira assediado por indagações cavilosas provocadoras da saraivada de impropérios, a réplica disparatada, esdrúxula, gaiata. Agora tomara o caminho definitivo, não mais a rotina da rua da Conceição até a Santa Luzia, a trilha casa/trabalho. Nem Caririaçu, onde nasceu; nem Juazeiro, onde viveu. Morreu em Barbalha, no Hospital São Vicente de Paulo, aos 87 anos, no dia 29 de novembro. Havia nascido a 18 de agosto de 1927.
Se o Joaquim foi embora, o Lunga ficou. E o mito permanecerá mais midiático, mais fantasioso. Se havia no mercado mais de oitenta folhetos dando conta de sua sacramentada picardia, outros poetas virão somar-se aos sessenta e cinco autores catalogados, narradores da saga discutível do vendedor de quinquilharias que entrou para a história da cultura popular pela porta da inventividade, do devaneio, do exagero. Notoriedade à parte, Seu Lunga era um sujeito afável, operoso e de agradável conversação, até, claro, quando não lhe viessem com propostas óbvias, tolas, sem fundamento. Aí, então, era atiçada a verve e o desaforo explodia de imediato.
Foi graças ao poeta e xilogravador Abraão Batista que o mito Lunga entrou no circuito. O cordelista publicou, em 1987, o folheto “As histórias de Seu Lunga – o homem mais zangado do mundo”, que logo partiu para uma segunda edição. A publicação correu o Brasil de ponta a ponta e a cama do Joaquim foi feita com esmero de mucama. Ponto de partida para a aparição de outros lungas: Seu Miro, Seu Boga e Zé de Lunga. Aliás, toda comunidade sertaneja, lapida, zela e paparica um “Seu Lunga” particular, muito próprio da humanidade. Em contrapartida proliferam os Pedro Bó a urdir simplórios questionamentos.
No fundo, Seu Joaquim Lunga apreciava essas interferências. A raiva, repentina e passageira, dava lugar à afloração de seu pensamento, de sua filosofia cabocla, o conselho cristalizado em anos de observância da alma do povo rude do sertão nordestino. Com sua resposta ríspida, para evitar constatação, deixava plantado o ensinamento que julgava útil à vida, pelo menos, para evitar que o cristão não recaísse na asneira de outra pergunta inconsistente.
Como o Alexandre de Graciliano (que é Pantaleão de Chico Anysio e Arnaud Rodrigues), João Grilo dos cordéis e de Ariano Suassuna e muitos outros fortes personagens da ficção que nasceram na real vivência, Seu Lunga tende a se perpetuar. Pena que mais no sentido depreciativo, tal Manezinho do Bispo e Zé Limeira. O tempo se encarregará de enxugar imagem e texto deste tipo grosseiro e bruto e entregá-lo para o futuro como um cronista do seu tempo, atento e doutrinador.
E passarão para o anedotário apócrifo as tiradas já adaptadas ao contexto, as aberrações verbais, os rompantes corporais que o velho Lunga do Joaseiro usava para contestar a tolice do povaréu, as incongruências de sua gente simplória. Seu Lunga sobreviverá.
*Audifax Rios é artista plástico e colunista do O Povo
Fonte: O Povo
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