Eric Nepomuceno: México, um país despedaçado
Mesmo num país acostumado à barbárie impune e à corrupção endêmica como o México, o assassinato dos 43 estudantes normalistas chocou o país.
Por Eric Nepomuceno*, na Carta Maior
Publicado 10/11/2014 11:18
Aqui no Brasil estamos acostumados à corrupção policial e às ligações de policiais civis e militares com o narcotráfico e com o crime organizado. Estamos acostumados a ver forças de segurança pública prestando serviços que são sua especialidade – a violência – a grandes latifundiários. E, além do mais, estamos fartamente acostumados a prefeitos corruptos.
Os desmandos da polícia corrupta mancomunada com criminosos de todo calibre acontecem no cotidiano de grandes centros urbanos – basta ver a Polícia Militar do Rio de Janeiro – e também nos confins perdidos – basta recordar o massacre de Eldorado do Carajás, em 1996, no violento interior do Pará.
Mas, pelo menos até hoje, não se viu nada por aqui que possa ser comparado ao que aconteceu em Iguala, uma cidadezinha de nada, que fica no estado de Guerrero, no México. Lá, o prefeito José Luis Abrange mandou a polícia prender e entregar ao cartel local do narcotráfico pelo menos 43 estudante de magistério. Eles apareceram na cidade para protestar, revoltados, contra as condições de ensino. Pretendiam interromper o trânsito e ocupar ruas e praças para pedir doações que seriam destinadas aos seus centros de ensino.
Para o prefeito, seria algo inadmissível: afinal, naquele mesmo dia haveria um ato político para lançar a candidatura de dona María de los Ángeles Pineda Villa à prefeitura municipal, nas eleições do ano que vem. O prefeito tinha seus motivos para se irritar. Afinal, María de los Ángeles era filha do chefão regional do tráfico. E mais: era quem, após o assassinato do pai e dos irmãos, tinha assumido o negócio. E mais ainda: ela é a esposa do alcaide. O suave casal está agora foragido.
Pelo menos 43 estudantes foram presos (veio a polícia de uma cidadezinha ao lado para ajudar), torturados, trucidados e mortos. Seus corpos foram empilhados e incinerados em um depósito de lixo. O fogo ardeu horas. Era uma noite sem lua. De longe dava para ver as chamas.
O que sobrou foi atirado num rio. Os peritos agora dizem que será quase impossível encontrar resto mortal algum.
Mesmo num país acostumado à barbárie impune e à corrupção endêmica como o México, o assassinato dos 43 normalistas chocou o país. Pelas ruas, manifestações indignadas exigem justiça numa terra acostumada à injustiça. Há algo mais, porém, que supera isso que poderia ser um caso isolado da alta mistura de políticos e policiais corruptos com narcotraficantes. É que o México vive, há pelo menos sete anos, uma espiral de violência sem precedentes.
Desde que em 2007 o ex presidente Felipe Calderón resolveu legitimar sua duvidosa chegada ao poder declarando guerra aberta aos cartéis das drogas, juntando Forças Armadas às polícias estaduais e municipais, pelo menos 75 mil mexicanos foram mortos. Só durante os seus seis anos de mandato, foram mais de 66 mil.
Quando em dezembro de 2012 o agora presidente Enrique Peña Nieto assumiu, resolveu afrouxar um pouco. Dizendo-se adepto de uma linha mais pragmática, procurou melhorar – nem que fosse um pouquinho – o nível de truculência da polícia. Disse que ia criar uma espécie de coordenação nacional no combate ao narcotráfico.
O México, principal rota de abastecimento do maior mercado de consumidores de drogas de todo o mundo, os Estados Unidos, vive há décadas uma guerra interna entre cartéis de narcotraficantes e forças de segurança pública corruptas, que se põem ora ao lado de determinados grupos criminosos, ora de outro.
Não há, à vista, vislumbre algum de que esse quadro possa ser mudado. O assassinato dos 43 estudantes normalistas não é mais do que o bárbaro reflexo dessa violência desmedida. Não é mais que o reflexo de um Estado esfrangalhado, aprisionado entre forças da corrupção e forças do crime organizado. Pelo vasto interior do país, surgem os grupos que se intitulam ‘de auto-defesa’. Às vezes são agrupações controladas por grandes latifundiários que tratam de manter, ao preço que for, seus privilégios impunes. Mas na maior parte das vezes são grupos controlados por cartéis de narcotraficantes, que tratam de se defender de bandos rivais enquanto vendem proteção à população desprotegida.
Claro que a tudo isso se soma outra nódoa que nós, brasileiros, conhecemos bem: juízes e tribunais igualmente corruptos, uma Justiça cambaia e lenta.
Peña Nieto começou seu mandato, há dois anos, prometendo uma série de reformas radicais que iriam modernizar o país. Quis que o México mudasse sua imagem e assumisse uma semelhança com o Brasil. Quis que o México disputasse conosco o papel de destino privilegiado de investimentos, além de dar exemplo de crescimento econômico.
Até agora, tudo que ele conseguiu foi mostrar que preside um país despedaçado. Que seu governo pode tentar implantar medidas e reformas que, no seu ponto de vista, significam modernizar o país. Mas que existe um ponto no qual o México não irá mudar: o ponto do terror.
Nas águas do rio San Juan, que passa pelo estado de Guerrero, desapareceram os restos mortais de 43 jovens calcinados. Que foram barbarizados pela polícia cumprindo ordens de um prefeito casado com a herdeira do cartel de drogas que domina a região.
Nas águas do rio San Juan não desapareceram as marcas de um país que tem um passado de brilho e glórias, um país que herdou uma cultura milenar e riquíssima. As águas desse rio refletem um país que, a cada dia, estilhaça o seu futuro.
*Jornalista e escritor.