Publicado 16/04/2014 13:36 | Editado 04/03/2020 17:16

A segurança pública, a reforma agrária e a regulação de mídia são alguns exemplos de políticas públicas que seguem intocáveis após a ditadura civil-militar de 1.964 e a promulgação da nova ordem constitucional de 1.988. A segurança pública segue o mesmo modal estabelecido pelas forças golpistas de 64, nas academias de formação de oficiais a ditadura é tratada como se fosse “a salvação do Brasil”, a ideologia do inimigo interno impera e produz um volume de mortes assustador no qual as vítimas têm identidades e endereços certos: são os jovens negros e pardos das periferias dos grandes centros urbanos. A polícia paulista produz mais cadáveres que toda polícia dos EUA, produz opressão e medo contra os movimentos sociais e pobres da periferia, afinal estes são os inimigos internos e das elites a quem a polícia serve. O policial é um operário, a decisão de quem servir é política e este paradigma deve ser enfrentado o quanto antes pelas forças progressistas.
A situação de São Paulo é dramática, o mote governamental tucano das últimas duas décadas de enfrentamento aberto à marginalidade e de encarceramento em massa são verdadeiros desastres. O sucateamento da Polícia Judiciária e o baixo índice de esclarecimento de crimes não são tratados como fator de insegurança, a visão hipertrófica do policiamento fardado ostensivo prevalece e a polícia investigativa vive em frangalhos. Um dos resultados da política de segurança tucana foi a organização da criminalidade como resposta ao massivo e precário encarceramento e forte repressão. Nasce o PCC e a indústria da segurança privada, esta última com orçamento maior que a segurança pública, os carros blindados, cercas eletrificadas e câmeras proliferam. As Mães de Maio e de todos os outros onze meses do calendário não estancaram suas lágrimas. Hoje, nas pesquisas de opinião, a segurança aparece como prioridade e atinge todos os segmentos sociais.
O campo de discussão sobre segurança pública é árido e desprovido de racionalidade, a grande mídia, outra filha legítima da ditadura, colabora decisivamente para a desinformação, dissemina o ódio e o espírito de vingança na sociedade, o povo se volta contra si próprio feito a imagem da cobra engolindo-se pelo próprio rabo. A confusão é brutal, a mídia prega penas mais duras, mas não diz que se houvesse um índice maior de esclarecimentos de crimes graves contra a pessoa, a discussão real seria o desencarceramento dos milhares de pobres presos que não apresentam perigo concreto contra a vida ou integridade das pessoas, as penas restritivas de liberdade poderiam ser substituídas por restritivas de direitos. Prega o fim da menoridade penal, mas não informa que as crianças e adolescentes têm sido cada vez mais vítimas de crimes, enquanto que a autoria de crimes graves contra a pessoa cometidos por adolescentes diminuíram. O ponto máximo da barbárie midiática foi a justificativa em telejornal do linchamento de um suspeito. O espectro eletromagnético é propriedade do povo, mas seus concessionários ignoram as regras básicas de uso para promoverem criminosamente a interdição de debates fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e pacífica.
Algumas soluções legislativas vicejam timidamente no Congresso, a desmilitarização e unificação da polícia é uma delas (PEC 51), entretanto a lei pode ser tão somente tinta em folha de papel. O fim da teoria do inimigo interno e a adoção efetiva dos princípios e garantias fundamentais do homem no conteúdo de formação policial são os desafios verdadeiros, a humanização da instituição. A maioria dos membros das associações de cabos, soldados e suboficiais das polícias militares são favoráveis à desmilitarização, a resistência interna na base das polícias é menor do que se imagina, o problema é muito mais de vontade política. O fim do Código Disciplinar que trata os praças como quase escravos sujeitos à prisão administrativa e toda ordem de assédio moral, fim da Inspetoria Geral que subordina as polícias à condição de forças auxiliares do Exército, fim da Justiça Militar Estadual e consequente vinculação de todos os policiais à jurisdição civil são sinais políticos importantes para construção de uma segurança cidadã. A outra polícia, a civil, em boa parte, é formada por pessoas honestas e interessadas em um modelo pautado na eficiência e respeito aos direitos humanos, os delegados de polícia nas redes sociais já discutem e formulam políticas públicas e questões administrativas neste sentido. Estas discussões se tornam mais interessantes e produtivas face ao completo sucateamento da polícia civil paulista, ao estado de penúria material e redução e envelhecimento do quadro de servidores.
A sensação de insegurança generalizada da população, a dor dos enlatados do sistema prisional, as lágrimas das mães dos meninos dizimados nas periferias e de tantas outras vítimas, inclusive policiais, não são apenas resultados de uma política de segurança oriunda da ditadura, mas passados 25 anos de promulgação da Constituição o enfrentamento deste drama passa ser responsabilidade de todos nós.
*Zé Francisco, membro do PC do B de Tanabi-SP, Delegado de Polícia e ex-prefeito de Tanabi-SP nos mandatos 2005/2008 e 2009/2012.