Para MPF, Brasil não trata com seriedade sigilo de documentos

Na avaliação de procuradores, não há argumentos sociais, políticos ou jurídicos que sustentem o sigilo, até hoje, em torno dos arquivos do regime militar. Insistência do Estado em manter os documentos fechados viola o direito à informação.


A luta das famílias dos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar no Brasil pelo acesso aos documentos produzidos pelo regime dura cerca de três décadas. O Brasil afirma que a maioria dos arquivos já foi aberta, que muita coisa foi destruída e que os documentos até hoje sob sigilo respondem à legislação em vigor – ou seja, não podem ser tornados públicos por colocarem em risco a segurança nacional.


 


Reunidos recentemente em São Paulo, num seminário internacional para debater a responsabilidade dos agentes públicos nos crimes da ditadura, procuradores federais, juristas, operadores do direito e representantes das famílias das vítimas foram unânimes em afirmar que não existem mais argumentos sociais, políticos e jurídicos que sustentem o sigilo desses documentos. Para eles, a insistência do Estado em manter os arquivos fechados viola o direito da sociedade à informação.


 


“No Brasil há uma política de trancafiamento e sigilo dos arquivos que viola direitos da cidadania. Sem o conhecimento da história, a população não pode exercer, hoje, seu papel cidadão”, afirma o procurador Marlon Alberto Weichert, que atua em processos que solicitam a abertura dos arquivos da guerrilha do Araguaia.


 


Para o Ministério Público Federal, o Brasil não tem tratado com seriedade suas matérias sigilosas. A Constituição Federal afirma o acesso à informação como direito fundamental e trata o sigilo como medida excepcional, que precisa ser justificada. Constitucionalmente, portanto, cabe ao Estado o ônus de dizer por que determinado documento não pode ser tornado público.


 


A lei 8519 de 1991, que regula a política de arquivos no Brasil, estabelece como prazo máximo para o sigilo de documentos o período de 30 anos, prorrogáveis por mais 30. Em dezembro de 2002, o decreto presidencial 4553 ampliou este prazo para 50 anos, prorrogáveis por mais 50. E, em dezembro de 2004, a medida provisória 228, que depois, em 2005, se tornou a lei 11.111, criou uma comissão especial apta a definir prazos mais longos para o sigilo de documentos.


 


“Na prática, aí se criou a possibilidade de sigilo eterno de documentos, algo inconstitucional. A medida provisória é um ato unilateral, editado em urgência. E a Constitucional veda que se utilizem MPs para regular direitos de cidadania, como o acesso à informação. Na prática, quando a MP 228 foi transformada em lei, o que o Legislativo fez foi delegar ao Executivo a possibilidade de definir quais arquivos são sigilosos e por que prazo. Colocaram a raposa pra cuidar o galinheiro”, acredita Weichert. “Imaginar que uma comissão composta por ministros e membros da Advocacia Geral da União poderá passar o tempo necessário se debruçando sobre os documentos para analisar com cuidado o que é sigiloso ou não é uma piada para a população”, afirma.


 


Segundo o Ministério Público Federal (MPF), prazos muito longos são inadmissíveis, porque o dano que pode ser causado pela publicização de um documento – e que justificaria então o sigilo – precisa ser atual. Em 50 anos, por exemplo, transformam-se as condições políticas nacionais e internacionais, e um suposto dano deixaria de existir. Daí a necessidade, para os procuradores, de se reavaliar rotineiramente o risco da divulgação de determinado documento e de não decretar sigilo eterno aos arquivos. A Constituição também não prevê a preservação apenas de interesses individuais para justificar a manutenção do sigilo de documentos. “Ou seja, não cabe manter os arquivos da ditadura fechados para preservar biografias ou proteger autoridades”, critica Marlon Weichert.


 


Na opinião do advogado e ex-Secretário da Justiça e da Cidadania de São Paulo, Belisário dos Santos Junior, há muitos documentos sob a posse de militares que precisam ser divulgados. “Temos que buscar os baús dos militares. Não podemos conviver com a idéia de que alguns brasileiros, porque tiveram acesso a documentos ou os roubaram dos arquivos nacionais, têm mais direito a essa informação do que 180 milhões de brasileiros”, critica.


 


“O Ministério da Defesa recusou a proposta da Comissão de Mortos e Desaparecidos de colocar na lei a obrigação de se contribuir com os trabalhos da comissão. A Abin [Agência Brasileira de Informações], até pouco tempo se recusava a contribuir com a Comissão em nome da privacidade daquelas pessoas. Preservar segredos de polichinelo é um grave desserviço ao país. Se a lei penal não punir essas pessoas, a história será implacável com elas”, afirma Belisário dos Santos Júnior.


 


A Carta de São Paulo, resultado do seminário internacional organizado pelo Ministério Público Federal em São Paulo, através da Escola Superior do Ministério Público da União, apontou como urgente a realização de um inventário sobre os arquivos sigilosos existentes em toda a Federação e a proposição ao Poder Legislativo de um projeto de lei sobre documentos sigilosos adequado ao caso brasileiro. Os procuradores devem reiterar ao Procurador Geral da República a proposta de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade da lei 11.111/05.


 



Fonte: Agência Carta Maior
http://www.agenciacartamaior.com.br