Urariano Mota: O encontro de Graciliano Ramos com Nise da Silveira

Conterrâneos de Alagoas, a psiquiatra e o escritor foram prisioneiros políticos na ditadura do Estado Novo

Nise da Silveira (1905-1999) é a homenageada neste sábado (15) no doodle do Google. A grande psiquiatra nasceu num 15 de fevereiro como hoje, há 115 anos.

Mas homenagem maior não há que o relato do seu encontro com Graciliano Ramos (1892-1953) na prisão. Conterrâneos de Alagoas, ambos eram prisioneiros políticos na ditadura do Estado Novo.

Doodle do Google em homenagem à psiquiatra Nise da Silveira

Confira abaixo o que Graciliano Ramos escreveu sobre esse encontro em Memórias do Cárcere

Chamaram-me da porta: uma das mulheres recolhidas à sala 4 desejava falar comigo. Estranhei. Quem seria? E onde ficava a sala 4?

Um sujeito conduziu-me ao fim da plataforma, subiu o corrimão e daí, com agilidade forte, galgou uma janela. Esteve alguns minutos conversando, gesticulando, pulou no chão e convidou-me a substituí-lo. Quê? Trepar-me àquelas alturas, com tamancos? Examinei a distância, receoso, descalcei-me, resolvi tentar a difícil acrobacia. A desconhecida amiga exigia de mim um sacrifício; a perna, estragada na operação, movia-se lenta e pena; se me desequilibrasse, iria esborrachar-me no pavimento inferior. Não houve desastre. Numa passada larga, atingi o vão da janela; agarrei-me aos varões de ferro, olhei o exterior, zonzo, sem perceber direito porque me achava ali. Uma voz chegou-me, fraca, mas no primeiro instante não atinei com a pessoa que falava. Enxerguei o pátio, o vestíbulo, a escada já vista no dia anterior. No patamar, abaixo de meu observatório, uma cortina de lona ocultava a Praça Vermelha. Junto, à direita, além de uma grade larga, distingui afinal uma senhora pálida e magra, de olhos fixos, arregalados. O rosto moço revelava fadiga, aos cabelos negros misturavam-se alguns fios grisalhos. Referiu-se a Maceió, apresentou-se:

– Nise da Silveira. 

Noutro lugar o encontro me daria prazer. O que senti foi surpresa, lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-a culta e boa, Rachel de Queirós me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se de tomar espaço. Nunca me havia aparecido criatura mais simpática. O marido, também médico, era o meu velho conhecido Mário Magalhães. Pedi notícias dele: estava em liberdade. E calei-me, num vivo constrangimento. 

De pijama, sem sapatos, seguro à verga preta, achei-me ridículo e vazio; certamente causava impressão muito infeliz. Nise, acanhada, tinha um sorriso doce, fitava-me os bugalhos enormes, e isto me agravava a perturbação, magnetizava-me. Balbuciou imprecisões, guardou silêncio, provavelmente se arrependeu de me haver convidado para deixar-me assim confuso. Uma rapariga loura surgiu perto dela e se ausentou logo. Tentei avaliar o tamanho da sala 4, observar o espaço restrito visível obliquamente. Vigorosa conversa política ali se desenvolvia, a pouca distância, dominada por um vozeirão de instrutor.

Quem seria aquela mulher de fala dura e enérgica? Um rapaz subiu à janela, arrumou-se junto de mim, chamou Haydée Nicolussi, e a lourinha tornou a aparecer. Travaram conversa loquaz; forçado a comparação desagradável, confessei-me obtuso e chinfrim. Vi no passadiço alguns tipos a aguardar vaga no miradouro improvisado; com certeza adoçavam ali as horas a parolar com as vizinhas.

Despedi-me de Nise e desci, uma pergunta a verrumar-me, insistente, os miolos: quem seria a criatura feminina de pulmões tão rijos e garganta macha? Nenhum interesse me animava a descobrir isso; refugiei-me na questão para fugir à lembrança de me haver conservado inerte e frio diante da psiquiatra. Foi Valdemar Bessa quem me satisfez a curiosidade: a mulher de voz forte era Eneida. E apertava-se uma dúzia delas na sala 4. Olga Prestes, Elisa Berger, Cármen Ghioldi, Maria Werneck, Rosa Meireles, outras.

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