Portadores de sonhos, inventores de caminhos

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Ainda muito jovens fomos entrando para o movimento da Igreja Aparecida, no bairro da Pedreira, através da catequese e do esporte, então sob forte influência da Teologia da Libertação. Éramos em sua maioria moças e rapazes em busca de rumos e amizade, com suas carências, principalmente, material, afetiva e de sociabilidade. Os espaços da paróquia: o átrio lateral, a quadra de esporte, o salão com seu palco italiano e a nave do templo eram a nossa praça, o nosso entretimento, a nossa convivência social, nosso aprendizado do céu e da terra, da arte e da boemia.

Eu, particularmente, descobri um mundo maior que minha rua, que minha casa e seu quintal frutífero, que minha escola e seu caminho. Foram se materializando novos sentidos, gostos, sentimentos e gestos. A timidez e o falar para dentro, quase mudo, o ombro curvado e o andar inseguro, epidermes da baixa-estima, invólucro de uma bomba prestes a explodir, encontraram a necessidade de ser eu, diante de uma fé que eu não tinha, de uma cultura que pouco conhecia, de pessoas diferentes com quem precisava conviver.

O mundo, que a mim chegava pelas ondas do rádio e nos poucos livros e revistas que lia, na Ilha Curuzu, número 20, além dos proveitosos ensinamentos da família e da escola, ampliou-se. De repente, começaram a explicar-se a prisão do “Careca” (vizinho sindicalista), que sumiu; as práticas militares do Instituto Lauro Sodré; a ausência de eleições, os sussurros sobre a Guerrilha do Araguaia, a perseguição sobre padres e posseiros, o fim do cinema de rua, o fechamento do Comitê da “Ana do Partido”.

A Pedreira passou a ser o centro de todas as coisas; a igreja, a crítica e a explicação de quase tudo; e nós, os novos portadores de sonhos, inventores de caminhos. Em seus limites, refúgio dos exilados e desvalidos, a luta de resistência à ditadura encontrou uma importante trincheira; SDDH, Jornal Resistência, Associação de Professores; as missas e a primeira-comunhão, a Crisma e  o Encontro de Casais, as CEBs e as aulas de catequese, as artes e a boemia viraram armas  afiadas de luta. Tornamo-nos necessariamente combatentes.

Assim, a esperança foi ocupando o lugar da fé, em nossa razão. O “Apesar de Você” foi se transformando no “Vai Passar” nos palcos e passarelas das lutas, e nós, juntos, entre celebrações, atos e reuniões, estudos e saraus, teatro “Vivência” e jornal “O Força”, “Bar Barão” e “Shangrilá”, fomos nós transformando. Passamos a ver e a ouvir, para além do “Acampamento” e seu direito de morar, dos muros da Igreja, o clamor dos explorados; já não eram só excluídos, viviam oprimidos por um sistema sem conserto nem piedade. Mudar o mundo passou a ser a nossa ousadia, a nossa vontade e a nossa compreensão.

A Igreja que nos juntou, animou, forjou amizades sólidas, tornou-nos críticos com sua formação a ponto de criticá-la, nos convidou a seguir nosso rumo de comunistas fora de suas hostes. Desse jeito, partimos, carregando vivências e ensinamentos, para outras frentes, na “Viração” e no “Arrastão” do movimento estudantil, nas grandes passeatas das “Diretas Já” e da Meia-Passagem, no movimento operário e dos camponeses por reforma agrária, contra o regime militar.

Já éramos jovens trabalhadores e trabalhadoras, estudantes, artistas na arte de representar e de viver, militantes do Partido Comunista do Brasil, a organizar e conscientizar o povo e suas lutas; chorar e homenagear nossos heróis; apresentar e eleger as nossas candidaturas; palmilhando Belém e os municípios, recebidos gentil e solidariamente por seus moradores para garantir vitoriosamente a sua legalidade.

A turma da Pedreira e da Aparecida optou em ser marxista-leninista, em um meio majoritariamente social-democrata, no momento de grandes lutas política e de massas, ocupando espaços no campo de batalha; participando ativamente nas fileiras e na reorganização do glorioso PCdoB, semiclandestino, no Estado do Pará.

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