O Louco

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Era uma plateia de pessoas muito jovens. Eu me sentia bem entre eles. Com 94 anos, cada vez mais gosto da presença de gente moça.

Existem algumas vantagens em se passar dos 90 anos. Umas delas, a mais óbvia, é continuar vivo, o que só vale a pena quando isso acontece com um mínimo de saúde e sanidade, o que pode ser considerado o meu caso. Por milagre, tenho uma saúde que me permite certa independência.

Não preciso de ajuda para nada da vida diária básica (andar comer, etc.). Digo o “por milagre” pois desde jovem sofro de pressão alta e gosto de beber. A hipertensão e o álcool são os meus companheiros mais fiéis. Mesmo assim, cá estou eu. É claro, nada mais é como antes. Hoje, bastam duas taças de chopp e eu já fico pra lá de Bagdá, como se falava antigamente.

A outra vantagem é que, mesmo com todo o avanço da medicina, somos poucos os que passam dos 90 o que, se nos condena à solidão, por outro lado valoriza nosso passe em certas ocasiões como essa, em que um grupo de estudantes de comunicação queria o testemunho de um jornalista que tivesse vivido as conturbadas três primeiras décadas do século 21, no Brasil. Como quase todos os mais famosos e importantes jornalistas da minha época já morreram, eu fui o escolhido.

Modéstia à parte, fiz sucesso. Depois da palestra eu não conseguia sair, cercado por dezenas de garotas e garotos que faziam perguntas aos borbotões.

O que mais despertava a curiosidade entre os jovens era o fato de que a luta política no Brasil de 2010 / 2030 tivesse sido, em parte significativa, influenciada por ampla difusão de notícias falsas que negavam a ciência e a razão.

Os alunos se acotovelavam em frente à mesa de conferência depois de mais de duas horas de debate e um deles perguntou se era verdade que as pessoas chegaram a resgatar a crença de que a terra era plana, conforme contava um livro que ele havia lido.

– Sim – eu respondi – entre 2018 até 2025 isso teve certa força. Mas podemos considerar uma excentricidade daquele período. Não era a maioria, pelo contrário. Porém, lembro que eu mesmo tinha um amigo que um dia, para minha surpresa, disse estar convicto de que a terra era plana porque havia visto vídeos, em uma rede social da época, que provava, provava entre aspas é lógico, que a terra era plana.

Uma aluna não se convencia: “Mas em 2018 já se haviam transcorridos quase 5 séculos desde a primeira circunavegação no globo e quase 60 anos do primeiro homem no espaço. Os satélites já haviam tirado milhares de fotos da terra vista do espaço. O homem já tinha ido à Lua fazia tempo. Era impossível essa discussão prosperar. Ou você não mostrava estes fatos para seu amigo?”.

Mostrava – respondi, cansado – estes e muitos outros, mas lembre-se que uma das características que ajudou a sedimentar o movimento que hoje é conhecido como “neofascismo olavista”  foi justamente a negação da racionalidade, a exaltação da ignorância e da superstição como contraponto à ciência, com a rejeição, além disso, não só de conceitos ligados à ideia de socialismo, mas de todos os valores mais básicos de solidariedade e igualdade social que herdamos da revolução francesa e do iluminismo.

Outro aluno:

– O que ainda fica na minha cabeça é como se permitiu que a epidemia de Covid-19, que o senhor lembrou na sua fala, tenha chegado a este ponto absurdo que chegou aqui. Eu perdi meu avô, que não conheci, e meu tio, que também não conheci. Comparado com outros países da época, bem mais atrasados que o Brasil, tanto economicamente quanto em termos de infraestrutura, tivemos muito mais mortes do que eles.

Eu queria ir embora e já estava ficando um pouco impaciente. Impaciência de velho.

– Eu já expliquei na palestra, muita gente não acreditava no vírus.

Uma aluna, linda, aliás, a mesma que me confrontou com a questão da terra plana, se descabelou literalmente. Colocou a mão na testa e perguntou:

– Mas como alguém podia duvidar da existência de um vírus?!

Reuni toda minha calma para explicar.

– Eles achavam que a pandemia era uma conspiração planetária comunista liderada pela China, pela ONU, pela Organização Mundial da Saúde e até pelo Fórum Econômico de Davos, que na visão deles também fazia parte do globalismo marxista (na medida que eu mesmo escutava minha explicação, entendia a perplexidade da rapaziada).

Um aluno interveio: – Mas o Fórum de Davos não reunia a nata capitalista do mundo?

Balancei a cabeça confirmando.

– Então, como seria possível o Fórum de Davos fazer parte de uma conspiração marxista?

Ao olhar para minha jovem plateia, alguns riam e cochichavam entre si como se dissessem: “este velho está exagerando”.

– Você teria que ressuscitar algum destes doidos para responder sua pergunta, retruquei. Os poucos ainda vivos estão envergonhados demais para admitir isso, mas o que eu contei está registrado pela história com fartas provas.

Com alguma dificuldade me levantei para ir embora. Estava já saindo da mesa quando um rapaz tímido, que usava um cabelo tão longo que parecia a Pocahontas, entrou no meu caminho:

– Desculpe, sei que o senhor quer ir embora, só mais uma pergunta.

Fiquei em pé olhando para o Pocahontas, esperando o que viria.

– O senhor disse, e eu já havia lido sobre isso em artigos e livros sobre a nossa história recente, que grande parte das mortes no Brasil ocorreu pela subestimação ou até mesmo a negação da existência da pandemia por um grupo político-ideológico liderado pelo então presidente. E que outra parte das mortes, embora em menor número, ocorreu pelo uso inadequado e massivo de um medicamento supostamente milagroso que o presidente mandou fabricar e incentivou o uso mesmo sem comprovação científica de sua eficácia. Entendi bem?

Mais uma vez, confirmei em silêncio.

– Então – ele continuou, com postura de “sou muito inteligente” – o mesmo grupo político-ideológico que negava a gravidade ou até mesmo a existência da doença, incentivava a ingestão de uma substância, expondo-se a riscos tremendos ao usar e propagar sem recomendação científica um medicamento que poderia causar, como causou, efeitos graves colaterais e até a morte, tudo para combater uma doença que, repito, – segundo eles mesmos! – não seria tão grave ou até mesmo não existiria. Depois de um pequeno silêncio, o Pocahontas fez um ar de triunfo e finalizou: Isso não tem qualquer lógica. Como é possível entender isso?

Olhei pra ele e dei a única resposta que consegui formular:

– É o que me pergunto há 40 anos, meu filho.

Continuei a andar, mais lento que uma tartaruga e mal-humorado, me sentido meio culpado não sei de quê.

Recusei ajuda para descer do palco e fui sendo paparicado pela turma até a saída.

Minha esposa, uma jovem no frescor dos seus 88 aninhos, já havia se adiantado e estava esperando no carro (até hoje é ela quem dirige).

De repente, senti um profundo mal-estar e estanquei. Diante de mim estava ninguém menos do que Jair Messias Bolsonaro, me encarando com aquele ar demente que durante tantos anos vi nas entrevistas, pronunciamentos e noticiários. O que restava de lucidez em minha mente avisava que aquilo não era possível, o Bozo estava morto há muito tempo. Tudo durou uma fração de segundos até que voltei a mim.

“Velho imbecil”, pensei. “É um holograma com o anúncio da palestra”. Ainda sou do tempo em que se usava cartaz para anunciar palestra em Universidade!

Não deixo de me impressionar com o realismo disso. Parece que é o próprio Bolsonaro, falando sem som para ninguém e gesticulando para o vazio enquanto as palavras iam dançando ao seu redor: “O Brasil no início do século e Bolsonaro – O Louco. Palestra com um jornalista, testemunha da história. 22/05/2060, às 10hs, auditório D”.

Aquilo melhorou meu humor. Foi assim que Bolsonaro entrou para a história, como “O Louco”.

A galerinha que ainda estava por ali ficou olhando enquanto eu apontava o dedo para o holograma e ralhava: “você agora está no inferno na companhia do Bispo Macedo e do Silas Malafaia, comendo a cloroquina que o diabo amassou”. Uma explosão de gargalhada saudou a blague, muito mais pela minha atuação de velho rabugento do que pela frase, que para a maioria deles deve ter soado enigmática.

Nisso, em meio ao alvoroço, abre espaço em minha direção o professor que me convidou para a palestra e que, por alguma misteriosa razão, me trata por Doutor: “Doutor, parabéns, sua apresentação foi um sucesso, o senhor causou uma balbúrdia no campus”. “Balbúrdia?”, repeti, e para espanto de todos foi minha vez de gargalhar alto. Tive preguiça de explicar minha alegria e, feliz, fui em direção ao carro onde minha esposa esperava, já com certa impaciência.

Fonte: Notícias da Terra Plana

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