A inteligência descomplicada, alto astral, do autor, que faz desses poemas reunidos curtas crônicas do cotidiano com pequenas grandes sutilezas, seja o principal ingrediente que falte hoje no prato do dia do presidiário virtual da rede, em meio a tanta mediocridade e baixeza circundantes.
Publicado 29/10/2021 11:23
“O amor, ah, o amor!”, rabiscou o poeta na dedicatória e eu ecoo: ah, o amor, que se pratica no agora sempre repetido, como dura lição a fazer com a doçura e os demais sabores que o dia a dia impõe ao tempero da convivência e que se devora, lendo Nicolas Behr em Alcina, seu último livro de poemas.
Difícil aqui, no caso, é ser durona, obedecer ao figurino do exercício resenhístico e rodear a obra sem tanto entusiasmo e elogios explícitos. Ana Miranda que o diga na orelha-prefácio. Talvez, porque estejamos muito carentes de leveza e delicadeza: altas horas sob os lençóis / (trás os montes) brancas colinas/ os pés se tocam –, e porque precisemos sempre de bom humor e boas surpresas,
alto!
quem vem lá?
alcina
a real
ou a imaginária?
a real
volta!
sobretudo pela dureza que tem sido viver o clima de ódio em cartaz, na guerra posta ao nosso Brasil em ruínas.
o meu amor
por ti acabou
a indiferença domina
o descuido impera
grassa a má vontade
cada um procura
um novo amor
que tal o meu?
Talvez, ainda, porque a inteligência descomplicada, alto astral, do autor, que faz desses poemas reunidos curtas crônicas do cotidiano com pequenas grandes sutilezas, seja o principal ingrediente que falte hoje no prato do dia do presidiário virtual da rede, em meio a tanta mediocridade e baixeza circundantes.
CHEGANDO EM CASA
a pia
limpa
utopia
*
CACOS NO CAOS
te abraço tão apertado
que os pedaços meus
dentro de ti
se juntam
*
alcina
disso um dia me disse
‘ainda bem que
temos um ao outro’
pronto
outro poema
Talvez também por tudo isso junto e mais: talento e sensibilidade muito próprios, carimbados no documento confesso da Profissão: Poeta, Nicolas se imprime soberano em seus mais de trinta títulos publicados, desde a década de 1970 até agora, e na quase totalidade desses livros se mostra peregrinando, vadiando, viajando pelas ruas de Brasília e pelos arredores dos horizontes da Capital-cidade, como o seu trovador mais assíduo, mais apaixonado e leal.
Porém em Alcina, a paisagem se desloca para dentro do quarto, do banheiro, da cozinha, da horta, da casa de corpos e almas, de coração e segredos (quase revelados), de idiossincrasias e sombras, de luminescências e brincadeiras, típicos de relação de casal.
escrever poemas
para escrever um nome
jk ou niemeyer? burle marx
ou lucio costa? athos?
alcina
*
O ESPANTO
diante da beleza
das formas do teu corpo
as curvas criadas
por niemeyer
são ângulos retos
Alcina, a musa, a rainha dos contos do lar bondosa e malvada, a esposa e parceira nos ganhos dos cifrões diários e nos cifrados jogos de amor nas noites e nas madrugadas, condensados na soma, multiplicação, divisão, do exercício de seus mais de trinta anos de vida em comum.
RILKE JÁ DIZIA
Alcina é tema difícil
escreva sobre o amor.
*
alcina
não sabe amar
eu não sei
o que é o amor
o amor só atrapalha
*
alcina, vem cá,
eu não mordo
nem se eu pedir?
*
O QUE QUER ALCINA
não quer poema
quer atenção
abraço
carinho
amor
beijo
sexo
nessa ordem
*
no princípio o precipício
fenda/ rachadura/abismo
beijos trincados
outras fissuras
o verbo : alucinar
e ela, a deusa,
se fez carne
e a sua carne
me habita
Leitores e mesmo poetas criticam poemas que aparentemente soam simples, singelos (e não menos aqueles xingados de difíceis e herméticos), mas quer maior sofisticação do que saber fazer um bom poema de amor sem conjugar e rebuscar os fracassos do romantismo, a dor, cafona, sempre à espreita, com adjetivos apelativos? E quantos metapoemas, líricos, divertidos, preenchem as 75 páginas do seu livro; aqui, alguns:
agora que você dorme
te admiro
com tempo e calma
leio um longo poema
pra ti
mudo e invisível
um poema
que se escreve
com o olhar
*
não gostou
dos poemas
não se viu neles
e se eu os escrevesse
com o seu batom
no espelho do banheiro?
*
sofisticar o poema
enfeitar o poema
o amor não quer
o amor quer beijo
na boca, cama larga,
vagabundear
amor não quer
poema floreado
quer flores
*
é tudo culpa
do amor idílico,
adélia
o amor idílico
não faz ideia
do teor etílico
das letras em itálico
Assim, o poeta abre suas portas e convida o público a esta exposição de versos, que parece feita de quadros, de cenas que podiam ser de filmes, de letras que podem virar canções, e por essa mostra perpassa a coloração verde-madura de plantas nativas e flores de viveiro, que os dois cultuam na construção de suas especiarias e fortunas.
alcina-pede-pele
pele-pede-poema
poema-pede-papel
papel-pede
pé-de-árvore
tronco-que-sou
te-dispo-cascas
*
VANTAGEM
aprendi com Alcina
que casar
é deixar de sofrer sozinho
para sofrer junto
Sorte de Alcina? Sorte dele? Mas sorte nossa também. Nikolaus von Behr, o Niki, como o chamam os amigos, entre os muitos bons poetas candangos ou os já nascidos em Brasília é o mais célebre, o mais conhecido, o que equivale a ser o querido da cidade por seu público leitor de poesia, este que também ama a mal falada Capital. Porque Behr sempre a abençoa e com a carne e a ossatura dos seus versos refaz, a seu modo, o traído projeto dela, modernista, enormemente humanista, original.
SETOR ALCINA SUL
plano antigo
te namorar
coluna
da minha alvorada
teu quadril, superquadra
sol noturno
lua sempre cheia
pilotis
do meu bloco-corpo
meu eixo.
Alcina é poesia feita pra alegrar quem anda cabisbaixo e desesperançado com os malfadados tempos vividos. Fica a dica.
Fonte: Brasiliários