O canto do poeta devoto à sua musa

A inteligência descomplicada, alto astral, do autor, que faz desses poemas reunidos curtas crônicas do cotidiano com pequenas grandes sutilezas, seja o principal ingrediente que falte hoje no prato do dia do presidiário virtual da rede, em meio a tanta mediocridade e baixeza circundantes.

Foto: Nathália Venâncio/Divulgação

“O amor, ah, o amor!”, rabiscou o poeta na dedicatória e eu ecoo: ah, o amor, que se pratica no agora sempre repetido, como dura lição a fazer com a doçura e os demais sabores que o dia a dia impõe ao tempero da convivência e que se devora, lendo Nicolas Behr em Alcina, seu último livro de poemas.

Difícil aqui, no caso, é ser durona, obedecer ao figurino do exercício resenhístico e rodear a obra sem tanto entusiasmo e elogios explícitos. Ana Miranda que o diga na orelha-prefácio. Talvez, porque estejamos muito carentes de leveza e delicadeza: altas horas sob os lençóis / (trás os montes) brancas colinas/ os pés se tocam –, e porque precisemos sempre de bom humor e boas surpresas,

alto!
quem vem lá?

alcina

a real
ou a imaginária?

a real

volta!

sobretudo pela dureza que tem sido viver o clima de ódio em cartaz, na guerra posta ao nosso Brasil em ruínas.

o meu amor
por ti acabou

a indiferença domina
o descuido impera
grassa a má vontade

cada um procura
um novo amor

que tal o meu?

Talvez, ainda, porque a inteligência descomplicada, alto astral, do autor, que faz desses poemas reunidos curtas crônicas do cotidiano com pequenas grandes sutilezas, seja o principal ingrediente que falte hoje no prato do dia do presidiário virtual da rede, em meio a tanta mediocridade e baixeza circundantes.

CHEGANDO EM CASA

a pia
limpa

utopia

*

CACOS NO CAOS

te abraço tão apertado
que os pedaços meus
dentro de ti
se juntam

*

alcina
disso um dia me disse

‘ainda bem que
temos um ao outro’

pronto

outro poema

Talvez também por tudo isso junto e mais: talento e sensibilidade muito próprios, carimbados no documento confesso da Profissão: Poeta, Nicolas se imprime soberano em seus mais de trinta títulos publicados, desde a década de 1970 até agora, e na quase totalidade desses livros se mostra peregrinando, vadiando, viajando pelas ruas de Brasília e pelos arredores dos horizontes da Capital-cidade, como o seu trovador mais assíduo, mais apaixonado e leal.

Porém em Alcina, a paisagem se desloca para dentro do quarto, do banheiro, da cozinha, da horta, da casa de corpos e almas, de coração e segredos (quase revelados), de idiossincrasias e sombras, de luminescências e brincadeiras, típicos de relação de casal.

escrever  poemas
para escrever um nome

jk ou niemeyer? burle marx
ou lucio costa? athos?

alcina

*

O ESPANTO

diante da beleza
das formas do teu corpo
as curvas criadas
por niemeyer
são ângulos retos

Alcina, a musa, a rainha dos contos do lar bondosa e malvada, a esposa e parceira nos ganhos dos cifrões diários e nos cifrados jogos de amor nas noites e nas madrugadas, condensados na soma, multiplicação, divisão, do exercício de seus mais de trinta anos de vida em comum.

RILKE JÁ DIZIA

Alcina é tema difícil
escreva sobre o amor.

*

alcina
não sabe amar

eu não sei
o que é o amor

o amor só atrapalha

*

alcina, vem cá,
eu não mordo

nem se eu pedir?

*

O QUE QUER ALCINA

não quer poema

quer atenção
abraço
carinho
amor
beijo
sexo

nessa ordem

*

no princípio o precipício
fenda/ rachadura/abismo

beijos trincados
outras fissuras

o verbo : alucinar

e ela, a deusa,
se fez carne

e a sua carne
me habita

Leitores e mesmo poetas criticam poemas que aparentemente soam simples, singelos (e não menos aqueles xingados de difíceis e herméticos), mas quer maior sofisticação do que saber fazer um bom poema de amor sem conjugar e rebuscar os fracassos do romantismo, a dor, cafona, sempre à espreita, com adjetivos apelativos? E quantos metapoemas, líricos, divertidos, preenchem as 75 páginas do seu livro; aqui, alguns:

agora que você dorme
te admiro
com tempo e calma

leio um longo poema
pra ti

mudo e invisível
um poema
que se escreve
com o olhar

*

não gostou
dos poemas

não se viu neles

e se eu os escrevesse
com o seu batom
no espelho do banheiro?

*

sofisticar o poema
enfeitar o poema
o amor não quer

o amor quer beijo
na boca, cama larga,
vagabundear

 amor não quer
poema floreado

quer flores

*

é tudo culpa
do amor idílico,
adélia

o amor idílico
não faz ideia
do teor etílico
das letras em itálico

Assim, o poeta abre suas portas e convida o público a esta exposição de versos, que parece feita de quadros, de cenas que podiam ser de filmes, de letras que podem virar canções, e por essa mostra perpassa a coloração verde-madura de plantas nativas e flores de viveiro, que os dois cultuam na construção de suas especiarias e fortunas.

alcina-pede-pele
pele-pede-poema

poema-pede-papel
papel-pede
pé-de-árvore

tronco-que-sou
te-dispo-cascas

*

VANTAGEM

aprendi com Alcina
que casar
é deixar de sofrer sozinho
para sofrer junto

Sorte de Alcina? Sorte dele? Mas sorte nossa também. Nikolaus von Behr, o Niki, como o chamam os amigos, entre os muitos bons poetas candangos ou os já nascidos em Brasília é o mais célebre, o mais conhecido, o que equivale a ser o querido da cidade por seu público leitor de poesia, este que também ama a mal falada Capital. Porque Behr sempre a abençoa e com a carne e a ossatura dos seus versos refaz, a seu modo, o traído projeto dela, modernista, enormemente humanista, original.

SETOR ALCINA SUL

plano antigo
te namorar

coluna
da minha alvorada

teu quadril, superquadra

sol noturno
lua sempre cheia

pilotis
do meu bloco-corpo
meu eixo.

Alcina
 é poesia feita pra alegrar quem anda cabisbaixo e desesperançado com os malfadados tempos vividos. Fica a dica.

Fonte: Brasiliários

Autor