Escritora ignorada pelo governador é a maior poeta viva de Minas. Há seis anos, o próprio governo estadual a homenageou
Publicado 15/02/2023 19:10 | Editado 15/02/2023 19:14
O governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), não sabe quem é Adélia Prado. Ou não sabia até sexta-feira passada (10), quando participou de um programa de rádio em Divinópolis (MG) e foi presenteado com um livro da poeta. Ao agradecer o mimo, Zema perguntou ao apresentador Flaviano Cunha se a autora trabalhava na emissora. Flaviano, desconcertado, disse que se tratava de uma “escritora muito famosa de Divinópolis”, a terra natal de Adélia.
Um vídeo com a gafe do governador desinformado logo viralizou nas redes sociais e chegou ao “trending topics” do Twitter. Sua dúvida – “Ela trabalha aqui?” – provocou certo pasmo entre os mineiros, que tanto cultivam seus filhos célebres. São naturais de Minas Cláudio Manuel da Costa, Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimaraens, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino – isso só para ficar na lista de poetas já falecidos.
Entre as “moças de Minas” com destaque na poesia, podemos citar Bárbara Heliodora, que também foi uma ativista pioneira, a “Heroína da Inconfidência Mineira”; e Henriqueta Lisboa, a primeira mulher a integrar a Academia Mineira de Letras. Se aqui cabe uma licença poética, por que não incluir na lista Cecília Meireles, fluminense de nascimento, mas mineira “honorária”, autora do Romanceiro da Inconfidência?
Há algo, no entanto, que distingue Adélia Prado de todos esses nomes – e é justamente o fato de que a escritora ignorada pelo governador é a maior poeta viva de Minas. Faz seis anos que o próprio governo estadual a homenageou, conforme recordou o petista Fernando Pimentel, antecessor de Zema no Palácio Tiradentes.
“A obra de Adélia Prado foi reconhecida pelo Prêmio de Literatura do Governo de Minas, durante nossa gestão, em 2017”, registrou o ex-governador. “A propósito, entre tantos livros dessa imensa escritora, tenho e recomendo Poesia Reunida. Fica a dica”, agregou Pimentel.
A Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) também quer apresentar Adélia Prado a Zema. Andréia de Jesus (PT) reivindicou uma reunião especial do Legislativo mineiro para homenagear a poeta – o pedido foi encaminhado ao presidente da Assembleia, Tadeu Martins Leite, o Tadeuzinho (MDB). “Estamos juntas, Adélia!”, tuitou a deputada.
Outro parlamentar, o deputado estadual Professor Cleiton (PV), protocolou na ALMG um projeto de lei que inclui o ensino da história de Minas Gerais nas escolas públicas. “As vidas de vários mineiros, alçados como heróis pela história, não podem ser esquecidas ou desconsideradas. Devem ser ensinadas, vivenciadas e produzirem crescimento e direção aos mais jovens”, escreve Cleiton na justificativa do projeto. “O fato de existirem mineiros que não saibam quem são ou quem foram essas figuras mostra que o ensino de Minas precisa ser revisto nesse ponto.”
Por fim, cabe lembrar que Adélia Prado é também um patrimônio nacional. Poucos escritores brasileiros foram tão aclamados quanto a poeta divinopolitana, que já recebeu, entre outros tributos, o Prêmio Jabuti de Literatura, o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional e a Ordem do Mérito Cultural. Mesmo em anos recentes, Adélia foi a autora homenageada em eventos literários como a 3ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura (2017) e o 62º Prêmio Jabuti (2020).
“De qualquer jeito, não faço aqui nenhum julgamento”, escreveu Renato de Faria, colunista do jornal Estado de Minas. “Apenas apresento a tristeza de alguém que vai morrer sem conhecer Adélia, que viveu sem saborear a doçura mineira da poesia. Conhecê-la não é uma obrigação, mas não experimentá-la é a negação de um beneficio espiritual que deveria ser garantido a todos.”
Com licença poética
(Adélia Prado)Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.