Marcos Aurélio Ruy: O mundo do trabalho no centro do cinema

Nem só de obras de entretenimento vive o cinema. Muitos filmes autorais versam sobre o mundo do trabalho.

Nada melhor do que a arte para mostrar a centralidade do trabalho na vida da humanidade. Para pensar a importância do 1º de Maio, Dia do Trabalhador, como forma de refletir sobre o futuro que se deseja para as novas gerações, vale destacar alguns filmes contemporâneos voltados para o tema. Até porque os filmes também são feitos por trabalhadoras e trabalhadores, cada qual em sua função, seja na atuação, na direção ou nas funções técnicas.

A crise do capitalismo de 2008 tem marcado as produções cinematográficas, inclusive de Hollywood. É o caso de muitas obras de entretenimento como La La Land (2016), de Damien Chazelle, um musical romântico no qual o casal jovem protagonista procura se encaminhar na vida através do trabalho.

Um Senhor Estagiário (2015), de Nancy Meyers, outro filme estadunidense de entretenimento, também aborda o tema. Um aposentado passa a trabalhar como estagiário numa empresa porque não suporta ficar sem trabalho. Mesmo por um viés conservador, a importância de ter um trabalho decente é essencial.

Mas nem só de obras de entretenimento vive o cinema. Muitos filmes autorais versam sobre o mundo do trabalho. São vários clássicos, de variadas épocas – mas aqui se apresenta uma seleção do que está sendo feito no cinema contemporâneo pelo mundo afora.

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Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert, Brasil

https://www.youtube.com/watch?v=xJ40jj_uDqk

Com o olhar da empregada em uma mansão no Morumbi, bairro onde residem muitos ricos na capital paulista, o filme da paulistana Anna Muylaert já se tornou um clássico ao abordar os dilemas vividos pelas mais de 6 milhões de empregadas domésticas no país que tem o maior número de trabalhadoras domésticas no mundo.

Como ninguém é uma ilha e no relacionamento entre as pessoas transbordam as questões sociais pelas quais a elite se sente no direito de usar e abusar dos trabalhadores domésticos, o filme apresenta os diversos setores dessa elite retrógrada e egoísta – e, por isso, chiaram tanto com a aprovação da Lei das Domésticas, em 2013, dando-lhes direitos trabalhistas, como horas extras e descanso remunerado, entre outros.

É central o comportamento de Jéssica (Camila Márdila), filha da protagonista e empregada doméstica Val (Regina Casé), que chega à mansão paulistana para prestar vestibular para a Universidade de São Paulo, no curso de arquitetura. A jovem se revolta ao ver a submissão de Val, acostumada a dizer sempre sim aos patrões. Val sai do emprego para ficar com a filha. É a trabalhadora deixando para trás um passado de submissão que com Bolsonaro insiste em voltar.

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Dois Dias, Uma Noite (2014), de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, Bélgica, França e Itália

https://www.youtube.com/watch?v=HD73FsXMoYQ

Com uma sensibilidade à flor da pele, Dois Dias, Uma Noite aborda a questão do desemprego sob a ótica de quem vende a sua força de trabalho. A protagonista Sandra (Marion Cottilard) – indicado ao Oscar de Melhor Atriz, em 2015 – sofre de depressão e tem dois dias e uma noite para reverter uma votação na qual os seus colegas decidiram pela sua demissão.

Parece muito cruel, mas foi colocado aos trabalhadores a manutenção de um bônus de mil euros ou a manutenção do emprego de Sandra.

A trama toda se passa com ela visitando um por um para tentar reverter essa votação. Profundamente humano, o filme foca em temas como solidariedade de classe, as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no mundo do trabalho e a insensibilidade patronal. Afinal, quem vive do trabalho não passa de número para quem explora essa força de trabalho. Será que ela consegue reverter? Só assistindo para saber.

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Por Uma Vida Melhor (2020), de Kenneth Gyang, Nigéria

https://www.youtube.com/watch?v=0IFFYljAwZE

Por Uma Vida Melhor se baseia na história real da jornalista Tobore Ovuorie, que se infiltrou numa rede de prostituição para investigar o tráfico de mulheres na Nigéria para serem exploradas como escravas sexuais na Europa. O filme denuncia o faturamento da indústria do tráfico de mulheres no valor de US$ 150 bilhões anuais e de US$ 99 bilhões somente pela exploração sexual.

A vida dessas mulheres se torna um inferno, já tendo que pagar à cafetina no local onde trabalham. As escolhidas para irem para a Europa sonham retornar com dinheiro suficiente para mudar de vida, quando se deparam com a pior forma de tratamento que um ser humano pode ter, a escravização. Pode ser assistido na Netflix.

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O Tigre Branco (2021), de Ramin Bahrani, Índia

Com rara sensibilidade, Ramin Bahrani, diretor de O Tigre Branco, mostra como o sistema capitalista corrói a alma humana e destrói as relações entre as pessoas. Principalmente porque o atual estágio desse sistema tenta mascarar a luta de classes com a ideia hegemônica de empreendedorismo e meritocracia, em que parte da classe trabalhadora tenta superar a pobreza de maneira individual com objetivo de “se dar bem”, de enriquecer e se tornar patrão.

Um pouco como o brasileiro Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, o filme apresenta uma Índia dividida em duas castas como diz o protagonista Balram (Adarsh Gourav). Grosso modo, o país é dividido pela casta dos “com barriga”, que vivem na fartura e exploram e humilham quem vive do trabalho, e os “sem barriga”, que vivem de vender a sua força de trabalho, mas com uma mentalidade serviçal, que os leva a se submeterem a humilhações sem precedentes.

O filme reflete sobre a corrosão da humanidade pelo capital destruidor de vidas e da própria humanidade. Capital cada vez mais concentrador de riquezas em cada vez menos mãos e ampliador da miséria, que é igual em qualquer canto, como cantam os Titãs.

Balram é uma espécie de Macunaíma – personagem de Mário de Andrade, livro publicado em 1928 e filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade, de 1969 –, um herói sem caráter, propenso a qualquer coisa para se dar bem na vida.

Entre o sul-coreano Parasita (2019), de Bong Joon Ho, que enxerga a saída individual para a superação da miserabilidade e o brasileiro Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que vê a união de forças para vencer o opressor, O Tigre Branco denuncia as mazelas de um sistema corrosivo e apresenta a falta de consciência da maioria da classe trabalhadora que os leva a sonharem com a saída da miséria e enriquecerem.

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Inspire, Expire (2018), de Isold Uggadottir, Islândia

A produção da Netflix consegue mostrar, de maneira impressionante, a frieza dos relacionamentos humanos no país europeu que pensamos distante da crise, do desemprego e da intolerância com refugiados – e o sentimento de estar refugiada no próprio país com suas instituições rígidas, opressoras e machistas.

O encontro inesperado e surpreendente de duas mulheres onde uma foge da violência e da perseguição em seu país africano. A outra batalha para ter trabalho e como sustentar a si e ao filho, em sua terra natal, a Islândia.

A africana tenta sair da Islândia rumo ao Canadá para ficar com a filha que conseguiu abrigo como refugiada, mas a mãe não. Inspire, Expire remete à necessidade de união de quem vive de vender a sua força do trabalho para a construção de outro mundo, onde as relações humanas possam se dar com respeito, compreensão e solidariedade. Afinal inspirar e expirar é o que nos mantêm vivos, na Islândia, na Guiné Bissau, nos Estados Unidos ou no Brasil.

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Você Não Estava Aqui (2019), de Ken Loach, Reino Unido

O mais recente filme do cineasta britânico, Ken Loach desmonta qualquer tese sobre o fim da história com supremacia do capital sobre o trabalho. Retrata com sensibilidade a chamada uberização que acaba com a possibilidade do trabalho decente, com todos os direitos como descanso remunerado, horário de almoço e jornada de trabalho definida. Você Não Estava Aqui mostra de forma realista as agruras enfrentadas com a superexploração da força de trabalho no capitalismo do século 21.

Essa exploração leva as pessoas ao limite de resistência física e psicológica por causa da exaustão de 14 horas de trabalho por dia. Predomina a tese de um suposto empreendedorismo que acarreta um esforço brutal para conseguir uma remuneração compatível com a dignidade.

Para Loach, a superexploração da força de trabalho e as dificuldades financeiras causadas por ela deterioram as relações humanas, por causa da carga excessiva de trabalho e pelo alto índice de competitividade para conseguir uma vida que beire a dignidade.

A família passa por momentos difíceis pela ausência dos pais em casa, devido às jornadas de trabalho cada vez mais excessivas. O adolescente Seb (Rhys Stone) não vê utilidade na escola e pretende se dedicar à arte do grafite; sua irmã Liza (Katie Proctor), de apenas 13 anos, sofre com as brigas constantes sem saber o que fazer para a paz retornar ao lar.

Exatamente como a maioria fica sem saber que sucumbe à exploração cada vez maior de sua força de trabalho que aumenta dia a dia a distância dos sonhos de uma vida com mais qualidade.

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