De leitor apaixonado na juventude, Astrojildo se torna um observador dos mais originais dos escritos machadianos, onde enxerga um “materialista a contragosto”
Publicado 07/03/2023 09:00 | Editado 08/03/2023 07:46
Que se saiba, Machado de Assis (1839-1808), o maior dos escritores brasileiros, jamais fez referência à pessoa ou às ideias de Karl Marx (1818-1883), o maior dos pensadores da humanidade. Mas havia ecos do marxismo na obra machadiana – e quem primeiro alertou para isso foi Astrojildo Pereira (1890-1965), um dos fundadores, há 101 anos, do Partido Comunista do Brasil.
Antes de enveredar para a vida militante, Astrojildo parecia fadado a mergulhar nas funções de jornalista e crítico. Por sinal, há mais escritos de sua autoria sobre literatura do que sobre política ou ideologia. Um episódio cada vez mais célebre da mocidade de Astrojildo reforça essa impressão.
Numa noite de setembro de 1908, Astrojildo, então um jovem desconhecido com 17 anos, ousou bater à porta da casa de Machado de Assis. Queria se despedir do grande escritor, que estava com a saúde profundamente debilitada, à beira da morte. A família, preocupada em não incomodar Machado, tentou impedir a entrada do admirador – mas o próprio autor de Dom Casmurro consentiu.
A cena que se passou, então, foi descrita dias depois por Euclides da Cunha numa crônica para o Jornal do Commercio: “Chegou, não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-a depois de algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu”.
O texto cita outros escritores presentes à residência de Machado – como “Coelho Netto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correa e Rodrigo Otávio”. Mas não dá nome ao protagonista da bela homenagem (o “anônimo juvenil, vindo da noite”), que só depois foi identificado como Astrojildo.
“Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida”, vaticinou Euclides da Cunha. “Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis –, aquele menino foi o maior homem de sua terra.”
Se “o menino é pai do homem” – e o próprio Machado frisou isso no 11º capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas –, o destino de Astrojildo não foi de reverência menor a seu cânone. Uma reedição de suas obras completas pela Editora Boitempo mostra que o crítico comunista, já maduro, manteve a deferência inabalável.
De leitor apaixonado na juventude, Astrojildo se torna um observador dos mais originais dos escritos machadianos, onde enxerga um “homem dialético” por força dos fatos – um “materialista a contragosto”. Segundo Astrojildo, ainda que Machado não mencionasse Marx direta ou indiretamente, ao menos o materialismo dialético – “a filosofia do marxismo”, conforme Lênin – sobressaía tanto em seus textos de ficção quanto nos de não ficção.
“Machado, para ele, produzia a sua literatura em momento de transição dialética do que era ainda instinto para o que viria a ser uma real ‘consciência da nacionalidade’, enquanto projeto de unidade e de soberania do país”, diz o professor Alcir Pécora, da Unicamp, em resenha para a Folha de S.Paulo. “O crítico admite a falta de vocação de Machado para a militância, mas discorda que isso signifique alienação ou desprezo pela política. Está nítido em seus escritos o empenho com que acompanhava a situação do país, aspecto que fazia da crítica o núcleo do seu engenho.”
A produção de Astrojildo sobre Machado já foi acusada de ter um viés hagiográfico, e livros como Machado de Assis – Ensaios e Apontamentos Avulsos, de 1959, parecem confirmar tais pitadas de idolatria. “Astrojildo defende Machado em todas as frentes em que o via ser questionado”, resume Pécora.
Nem por isso a opinião do primeiro grande comunista do Brasil deve ser relativizada, ainda mais pela audácia com que ele se empenha para “insinuar” em Machado “um germe de marxismo, dentro da consciência possível do seu tempo”. Lembremos: Machado morreu nove anos antes da Revolução Russa, de 1917, que provocou uma explosão de debates sobre Marx e o marxismo.
A obra de autores como Luís Gama (1830-1882) e Lima Barreto (1881-1922) foi mais fundo em temas como a luta de classes e o racismo. Mas será que, a esta altura, não nos convém reler Machado com um mínimo da generosidade ideológica que Astrojildo lhe dispensou?