Kizomba, da Vila Isabel, 35 anos atrás despertava para a Consciência Negra

Um dos mais importantes desfiles da história do Carnaval do Brasil, o ‘Kizomba, festa da raça’, idealizado por Martinho da Vila, colocava Zumbi dos Palmares e o povo quilombola no protagonismo que lhes era de direito

Vista geral do desfile ‘Kizomba, festa da raça’, da Vila Isabel, em 1988. Foto: divulgação site da Unidos de Vila Isabel

Se em 20 de novembro temos o Dia da Consciência Negra, os desfiles das escolas de samba – estamos a mais ou menos três meses do próximo Carnaval, tema desta coluna – têm contribuição significativa para esse despertar. Por sinal, 2023 marca os 35 anos de ‘Kizomba, festa da raça’, enredo com o qual a Vila Isabel conquistou seu primeiro título, nos desfiles do Rio de Janeiro.

Não podemos deixar o ano terminar sem registrar esse aniversário. Naquela apresentação do Carnaval de 1988, a Vila Isabel chacoalhou o público que acompanhava os desfiles in loco, na Passarela do Samba Darcy Ribeiro, na Avenida Marquês de Sapucaí, e impressionou os milhões de espectadores que assistiram à transmissão da televisão.

Era o Centenário da Abolição. Entre as diversas atividades que celebraram a efeméride durante o ano, os desfiles das escolas de samba não poderiam ficar de fora. Diversas agremiações, no Rio de Janeiro e em outras praças, trataram do tema em suas apresentações.

O enredo da Vila Isabel, idealizado por Martinho da Vila, chamou a atenção pela abordagem diferente. O protagonismo foi dado a Zumbi dos Palmares, à luta do povo negro por liberdade, às raízes afrodescendentes da cultura brasileira.

Essa perspectiva ficava evidente na letra do samba-enredo, e era ilustrada por alas, fantasias, alegorias e destaques que representavam com riqueza de detalhes e vigor toda a ancestralidade afro do Brasil. A Vila Isabel era menos luxuosa, requintada e rica que as concorrentes, mas superou isso com originalidade, arte e muito “chão”, como se diz no jargão carnavalesco.

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É dizer: a Vila Isabel veio com o povo, para o povo.

Vale muito replicar aqui a letra do samba-enredo, verdadeiro hino à luta quilombola. A composição, por vezes creditada a Martinho da Vila, na verdade é de Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila; e a interpretação foi de Gera e Jorge Tropical. A Martinho, como mencionado, coube conceber o enredo. E aos carnavalescos transformar tudo em espetáculo na avenida, a céu aberto.

Vamos à letra do samba:

Valeu Zumbi !

O grito forte dos Palmares

Que correu terras, céus e mares

Influenciando a abolição

Zumbi valeu !

Hoje a Vila é Kizomba

É batuque, canto e dança

Jongo e maracatu

Vem menininha pra dançar o caxambu (bis)

Ôô, ôô, Nega Mina

Anastácia não se deixou escravizar

Ôô, ôô Clementina

O pagode é o partido popular

O sacerdote ergue a taça

Convocando toda a massa

Neste evento que congraça

Gente de todas as raças

Numa mesma emoção

Esta Kizomba é nossa Constituição (bis)

Que magia

Reza, ajeum e orixás

Tem a força da cultura

Tem a arte e a bravura

E um bom jogo de cintura

Faz valer seus ideais

E a beleza pura dos seus rituais

Vem a lua de Luanda

Para iluminar a rua

Nossa sede é nossa sede

De que o “apartheid” se destrua (refrão)

Importante resgatar também que, dois anos antes da Kizomba de Vila Isabel, o Rio de Janeiro ganhara um monumento em homenagem a Zumbi dos Palmares. Idealizado por Darcy Ribeiro, então vice-governador (Governo de Leonel Brizola), a obra foi inaugurada em 1986, na Avenida Presidente Vargas, altura da Praça XI – por sinal, próximo ao sambódromo também concebido por Darcy, Brizola e Oscar Niemeyer.

Há 20 anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei federal 10.639/2003, determinando como obrigatório o ensino nas escolas da história e cultura afro-brasileiras. Em seu artigo 79, a lei instituiu em calendário escolar o 20 de novembro (data da morte, em 1695, de Zumbi dos Palmares) como Dia da Consciência Negra.

Em 2011, o Dia da Consciência Negra se ampliou, deixando de ser apenas circunscrito às unidades de ensino para se tornar, por meio de lei federal (12.519/2011) sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, uma data nacional.

Valeu, Zumbi. Zumbi, valeu!

Em tempo: aquele período da Vila Isabel virou tema de pesquisa de mestrado em História. De autoria de Eduardo Pires Nunes da Silva, a dissertação ‘Azul celeste em vermelho: o projeto carnavalesco de Martinho e Ruça na Unidos de Vila Isabel de 1988 a 1990’ foi defendia em 2014, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e pode ser lida na íntegra neste link: <https://www.bdtd.uerj.br:8443/bitstream/1/13141/1/Eduardo%20Pires%20Nunes%20da%20Silva%20%20Dissertacao.pdf>.

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