Pertenço à geração pós-64, aquela geração que viveu a ditadura sem entender muito bem o que se passava ao seu redor. Menino no interior do Ceará, eu construí um mundo de heróis, reais e imaginários. Cochise, Touro Sentado, Zé Lourenço, Ken Parker, Pedro B
Publicado 14/11/2006 17:40 | Editado 13/12/2019 03:30
Quando entrei no Partido Comunista do Brasil eu era um adolescente romântico, que via o socialismo e o comunismo como uma causa romântica e cheia de heroísmo. Eu era marcado pelas minhas leituras e pelas histórias que minha mãe contava sobre a minha cidade. Havia dois personagens muito fortes: Raimundo Grigório, líder operário, que não conheci, e Zé Pajé, líder dos trabalhadores rurais, que conheci alternando momentos de lucidez e senilidade, visivelmente afetado pela prisão e pela tortura. Eram as minhas referências da luta do povo, aqueles dois combatentes dos quais minha mãe falava com tanto respeito. Quando ela, Dona Idalzira, descobriu que eu era comunista, desfez-se em lágrimas. Compreendi depois que não era discordância, que não era desgosto por ter um filho comunista. Era medo. Ela vira amigos e vizinhos serem presos e voltarem torturados, ela vira os que foram presos e nunca mais voltaram.
No Partido Comunista do Brasil encontrei heróis de carne e osso, muito próximos a mim. Aquele adolescente que via o mundo com os olhos do romantismo e da literatura, encantou-se com os combatentes do povo, com homens e mulheres do povo que haviam enfrentado a ditadura e que permaneciam na luta, serenos, firmes, bons companheiros. Nesses heróis eu podia tocar, conversar com eles, discordar deles. Gente como Carlos Augusto “Patinhas”, Abel Rodrigues, Noélia, Benedito Bizerril, Gilse Cosenza, Zé Rubens “Rubão”, Zé Moisés, Jairo Gonçalves “Dotô”, Gondim. Heróis de carne e osso. Aprendi muito com esses homens e mulheres. Seu Zé Moisés não vive mais, mas os outros permanecem na luta de todos os dias, na luta cotidiana dos comunistas. Muito continuo aprendendo com esses homens e mulheres.
Dentre esses heróis destaco um velho companheiro que sempre me encantou pela sua simplicidade, pelo seu bom humor contagiante, pelas suas “tiradas” precisas, pela sua boa companhia em torno de uma cachacinha, pelo seu bom papo, sua solidariedade, sua defesa arraigada da educação e dos professores.
A admiração que o adolescente de 17 anos sentia por Chico Lopes, este senhor de meia idade e cabeça branca que agora escreve continua sentindo. Vejo como o tempo passou. Já são mais de duas décadas de militância. Chico Lopes continua sendo, pra mim, o mesmo herói da adolescência. Um homem do povo com uma história de vida belíssima, um combatente que enfrentou a ditadura com bravura, que não se rendeu, que resistiu à prisão e à tortura, que não se assustou com a onda avassaladora do neoliberalismo, da queda do muro, da crise do socialismo. Um velho combatente, um bom comunista, que não se rendeu. Um Francisco, um Chico, mas não um Chico qualquer, um Chico Lopes, professor, comunista. Leio em algum lugar que Chico Lopes já tem 67 anos. Não me parece verdade. Em maio desse ano, antes de iniciar a campanha eleitoral, estive com ele na porta de uma grande fábrica em Sobral, cerca de quatro mil trabalhadores na troca de turno, de um total de quinze mil, distribuindo A classe operária, número especial, comemorativo do dia dos trabalhadores. Ele não pode ter tantos anos assim. Não é o que diz a sua jovialidade, a sua disposição para estar ali às quatro da manhã, tomar café rapidamente e enfrentar um turno corrido de debates acerca da formação de professores, das oito à uma da tarde. É um menino bem disposto e bem humorado, esse Chico Lopes, não um senhor quase septuagenário. Não com o estereótipo que carregam os nossos sexagenários.
Esse homem do povo, esse herói da minha adolescência, foi eleito deputado federal. Vai pra Brasília, mesmo com seu folclórico medo de avião, que eu conheço muito bem. Vai representar o povo do Ceará. Fiz campanha pra ele, votei nele com muito orgulho. Quando ele tomar posse, daqui a uns meses, são os meus heróis que estarão sentando com ele naquele plenário, a sua voz será a voz de todos eles. Junto a ele estará outro combatente, o primeiro senador comunista depois de Prestes, Inácio Arruda. Não é pouco. É muito. É uma vitória enorme para o povo do Ceará.
Minha mãe, aos oitenta e dois anos, com uma artrose nos joelhos que no dia da eleição a impedia de andar, ainda assim foi votar. Disse pra mim, ao telefone, que tinha ido por mim, por Inácio Arruda e por Chico Lopes, porque queria votar neles. Acho que não era verdade, acho que ela foi por ela mesma, por Raimundo Grigório e por Zé Pajé. Ela foi pelo nosso povo. Esse mesmo povo que vai tomar posse com Inácio e Lopes. São os heróis da minha adolescência que tomarão posse junto com eles.