Publicado 29/06/2022 10:00 | Editado 29/06/2022 16:21
A poesia como perseguição do Real, o poema como um círculo riscado à roda de sóis-sustos-luas – delicada e gravemente estendidos, retidos e colhidos a cada instante –, a palavra como gesto de atenção, sequência e rigor. Pois o entendimento de Sophia de Mello Breyner acerca da arte poética mais do que se ajusta, mas imanta e ilumina a voz da escritora, pintora, cineasta Maria Maia, a qual cotidianamente emerge como urgente, inevitável, vital. Tal como o Tai Chi Chuan que diuturnamente pratica, PoemAção modula, em seu dorso, a contração-expansão do que nos é cíclico, o exercício de tensão-distensão ante o mundo que ora avulta violento, repulsivo, ora esplende terno, amoroso.
Estruturado em três grandes atos – PoemAção, Poemas do Confinamento e Poesia Militante –, como chamamento dos mais imperativos – “Preciso de um poema” –, ao longo de quase 350 páginas do seu terceiro livro-solo de poesia, Maria igualmente nos convoca a pactuar, com fôlego e coragem e por meio de “palavras vibrantes” que lhe escavam e “penetram adentro seus sentidos”, com o seu engajamento contundente face a um Real habitado tanto por crianças, flores e passarinhos quanto por mortos, náufragos e canalhas: “É preciso que gritemos”, incita. E complementa: “Falo e avanço/ (não me calo)” – afinal, “a poesia não espera” e “escorre pelas eras feito fera acuada/ escapando pelas portas e janelas”.
Mesmo admitindo em si a “louca da casa”, que “já nasceu cheia de asas”, a poeta não dissocia o dom da imaginação da ação resoluta: “Imagino as coisas e as ponho em ação”. Ivone Gebara, religiosa feminista e ativista admirável, adverte quanto às acepções dicionarizadas em torno do verbo “imaginar”, as quais arbitram como significado “conceber a imagem de algo que não é real, que não está presente no imediato, que ainda não existe”, sublinhando, porém, o seu poder em desvelar o que justamente brota da poesia, desocultando, assim, mais do que os fatos e as retinas instantaneamente dão a ver. Ao creditar somente ao imaginário “a ilusão de completude”, Maria reafirma o seu comprometimento lúcido com o Real. Em seu corajoso PoemAção, através de suas lupas e lunetas e nas palavras que a “lavram” e a “abrasam”, cria e destrói mundos, (re)encenando, portanto, a imaginação como potência constitutiva de realidades possíveis, ao alcance de nossos destinos, ideologias e alteridades, mantendo-lhe os “nervos tesos” e riscando o céu feito raio: “Sem a poesia, q me atavia, me esvaio”.
Cabe apontar também como a cosmovisão oriental da poeta, ou seja, a filosofia chinesa da dualidade, ancora e inscreve o seu melancólico ser-estar no mundo: “Sou simplesmente feita de Terra e de Tao/ Na matéria etérea do universo sou vida gerada/ Bem sei q dentro de tudo o q há sou quase Nada […]”. E diante de sua letra por vezes irradiadora de sentidos, por outras, falha, estéril, ao evocar a galáxia heteronímica de Fernando Pessoa, bem como os pares opostos e complementares do Ying e do Yang – “A tristeza abissal de Pessoa/ Não escorre à toa /Sua toada por mil vozes habitada/ Nos coloca diante do Tudo e do Nada” –, a artista invoca o transcendente, tangendo “a existência devastadora do Absoluto”, como demarcava Baudelaire diante do espantoso Nada que a tudo sustém. Em seu halo metafísico, acrescenta a poeta: “A poesia põe o poeta frente ao Tudo e ao Nada/ Fogo, terra, água e ar sempre transmutada/ Assoprando a música das esferas”.
Inquietamente movida por indagações ontológicas, Maria lança ainda seus dardos acerca das insistentes e renováveis aporias: a que viemos? O que nos precede e nos ultrapassa? “Em flor/ recolho/ no poema/ a máquina do mundo/ Dante/ Camões/ Drummond a encontraram” – e junto à poeta e aos vates de outrora o mesmo desconcerto ante o enigma-esfinge que a tudo gira e regira, em incessante moto-contínuo por entre astros, esferas e existências. Atenta à realidade sensorial que lhe dilata os poros e a “pele fria”, mergulha, então, no mistério inefável e admite o inescapável ao alcance dos cinco sentidos: “A Máquina do Mundo já não me apraz/ Entrar na noite simplesmente me atrai mais”.
Em seu condão de doar sentido ao que observa e a circunda, desde a materialidade mais visível à miragem do Mistério do Amor e da Existência, Maria Maia confere à Poesia o papel de protagonista no leito da vida, veículo que transcorre como brado e como prece, por alternar, não paradoxalmente, impotência e exultação, clamor e realização, no arco Yin e Yang: “Tao: fêmea-obscura-primeva/ Gerou os opostos complementares/ Yin Yang em permanente mutação/ Dança da luz e das trevas/ Tecendo o universo/ Em todas as suas 10 mil manifestações”.
Em suas ampliadas passagens para a alteridade, a poeta reverencia nomes diversos da palavra, da dança, do teatro, da música, do cinema, da cena política, compondo a sua constelação particular de homenagens: Luís Inácio Lula da Silva, Hugo Rodas, Sousândrade, Mario Peixoto, Gilka Machado, Mário Faustino, Maria Bethânia, Chico Mendes, Chico Alvim, Bandeira, Hilda Hilst, Orides Fontela, Caetano Veloso, Augusto dos Anjos, Paulo Leminski, Ana Cristina César, Augusto e Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim, Torquato Neto, Malu Verdi, Eudoro Augusto, Nuno Ramos, Celso Araújo, Bené Fontelles, João Cabral, Zuleika de Souza, Cecília Meireles, António Vieira, Gregório de Matos, Jorge de Lima, Luiz Carlos Barreto, mestre Woo, entre muitos e muitos outros, os quais generosamente amalgama em seus testemunhos poéticos como artífices de sua comovida formação como artista e cidadã.
Alberto Caeiro, o mestre zen-budista da plêiade pessoana, assim ensinou a seus pares: “a poesia nos ensina a ver como se víssemos pela primeira vez”. E o “pasmo essencial” ante a “eterna novidade do mundo” e “a aprendizagem de desaprender” reverberam no imaginário da autora de PoemAção, na nitidez do seu olhar-girassol: “Deus é como uma criança criando mundos/ Tirando de si mesmo o engenho mais profundo/ Uma criança imaginando, brincando, construindo/ Uma criança entretida com a vida/ Uma criança sorrindo” – o que reforça novamente a importância capital da imaginação, e como diz Valter Hugo Mãe: “apenas os que desistiram guardam o sonho para o tempo de dormir”. E como lembra Debora Diniz, “uma feminista não desiste, por isso sempre imagina”, assertiva que coaduna plenamente com o humanizador gesto poético-político de Maria Maia.
Entre deusas greco-romanas, indígenas sagradas, mães guerreiras, mênades, musas, magos e bacantes diversos – e em seu firme projeto de “uma poesia por dia pra sair da agonia” –, a poeta borda e desborda, a exemplo da amorosa Penélope, os seus tantos mantos: “Sou uma mulher rendeira/ Cheia de tramas verdadeiras/ Nos finos fios da poesia me atavio/ Tecendo e tramando certeira/ As histórias se sucedem no meu bilro/ E assim dia a dia sobrevivo”. E em seu projeto de seguir cotidianamente com a Palavra, a remissão a Paulo Freire se faz inevitável: “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo.” Para a nossa poeta acreana, ainda o aconselhamento luminoso de ter de se “sustentar o espírito noite e dia/ e manter qnd possível a alegria”.
E sob o influxo propositivo do esperançar, com pés e mãos bem plantados, mas com seus tantos olhos de águas e céus, é de modo telúrico que Maria Maia se faz e se refaz “sob o sol ou sob a lua, fontes eternas de luz”, cujos “mente, espírito, carne e sangue” assinalam o Tao e devolvem ao infinito a que vêm os seus poemas-em-ação: “Toma a tocha da poesia e passa adiante”. Cumpra-se, pois.
Prefácio do livro “PoemAção”, de Maria Maia.