Documentário do cineasta italiano passa a ideia de que a China estava vivendo dentro de uma estrutura social militarizada
Publicado 26/02/2021 17:12 | Editado 26/02/2021 17:13
Na produção cinematográfica de Michelangelo Antonioni, o filme Chung Kuo (Cina) é um dos mais especiais, embora a produção de Antonioni possa receber a consideração de ser toda ela especial. A convite do presidente Mao, o cineasta foi para a China e lá produziu esse documentário, que tem mais ou menos 2h40min de duração. Nunca tinha visto totalmente essa obra. E agora a vi por incentivo de Urariano Mota, que me enviou a Parte 1 – e eu vi a Parte 2 no YouTube, onde o filme se encontra à disposição do público.
É um filme produzido em 1972 e se pode pensar que já seja sem importância para se conhecer a China. E particularmente a China de Mao. No entanto, me parece uma obra fundamental para quem quiser estudar ou comentar sobre esse país. Apesar de apoiado por Mao, depois que o filme ficou pronto na Itália os chineses não o apoiaram. E também foram contra o filme os partidários do Partido Comunista da Itália, certamente considerando que não havia sido mostrada a realidade do país. A meu ver e no meu olhar de hoje, o que aconteceu foi que Michelangelo Antonioni era um cineasta com uma narrativa muito diferente do que os chineses poderiam esperar. Quando estive na China, em 1962 – portanto, dez anos antes de Antonioni –, visitei um estúdio em Xangai e lá conheci um pouco do que os chineses pretendiam do cinema.
Eles se orientavam num sentido de utilizar a forma de construção cinematográfica dos norte-americanos, de Hollywood, para atingir o enorme público nacional que tinham em potencial. E assim não poderiam entender um cinema onde a dúvida tem mais importância do que a afirmação direta, que sempre foi o de Antonioni. Não que o italiano fosse contra o que estava acontecendo na China. Mas, mesmo apoiando a Revolução do presidente Mao, não poderia o cineasta deixar num filme seu de duvidar de tudo que via. Isso é ou não é bom para o povo? Sempre Antonioni queria se questionar. E os chineses precisavam na época de afirmação.
No conjunto, o filme nos passa a ideia de que a China estava vivendo dentro de uma estrutura social militarizada – e isso é bem claro provavelmente porque no período estava acontecendo a chamada Revolução Cultural. Grupos de camponeses adultos. Grupos de meninos. Grupos de mulheres. Todos se mostram além de ativos em outras formas de vida, mas também sendo preparados numa estrutura militarizada. Certamente que muito disso ainda hoje se mostre. Uma população de mais de 1,4 bilhão milhões de pessoas não pode ser reestruturada para a vida senão com uma forma muito bem construída.
Mas o filme de Michelangelo Antonioni consegue ser poético. Não é duro. É sempre suave. A parte que me parece mais drástica para assistirmos é quando temos a documentação de um parto cesariano sem anestesia com drogas, mas, sim, com utilização de acupuntura. As agulhas tradicionais fazem com que a jovem permaneça inclusive conversando com a equipe médica. E no filme todo, e particularmente na segunda parte, sentimos como os comunistas dirigentes, certamente que acompanhando a orientação de Mao, seguem métodos tradicionais da cultura chinesa.
(Olinda, 17. 2. 21)
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O CINEMA EXPERIMENTAL DE JOÃO CÉSAR MONTEIRO
Em destaque no site Making Off estão três filmes de João César Monteiro e vi dois deles. Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, feito em 1971, e Fragmentos de um Filme-Esmola: A Sagrada Família, de 1972. Estes são o segundo e o terceiro filme da produção de João César, que é certamente uma figura fundamental do cinema feito no mundo nos anos 1960 e seguintes. João César nasceu em 2 de fevereiro de 1939 e morreu em 3 de fevereiro de 2003 – ano em que fez seu último filme, Vai e Vem.
Se a crítica brasileira e mundial fosse menos colonizada, é claro que João César Monteiro seria tratado com mais ímpeto de estudo. O cinema dele não obedece a padrões estabelecidos nos países dominantes, como Estados Unidos e França. João César fez um cinema de extrema liberdade para escolha dos próprios caminhos. Um filme que vi há muito tempo e do qual gosto muito é Recordações da Casa Amarela.
O cineasta explica o título do Quem espera… e diz que se trata de uma fábula cinematográfica. Foi um filme que ele fez com muitas dificuldades de produção. É um média-metragem com duração de 31 minutos. As cenas começam com pessoas conversando entre elas somente. Em vez de diálogos, o que ouvimos é um som de quase ruídos. Depois temos certos discursos com pretensões filosóficas ou poéticas, mas não diálogos. Por um longo tempo, um intérprete sentado num banco de praça tenta tirar seus sapatos e calçar outros. No desenvolvimento, surgem outras cenas, porém nunca temos um cinema divertido.
No Fragmentos, a sequência principal é a de um pai brincando com seu filho de uns 9 anos. Durante cerca de 20 minutos, eles ficam na cama do pai e este toma posições de estátua. O filho fica pulando e tentando se situar em posições também de estátua. Depois, passamos para uma sequência em que na tela aparece uma laranja em close e alguém explicando a situação natural da laranja. Voltamos para uma cena em que um casal de pretensos professores falam sobre a educação – e a filha do casal filma tudo com uma câmera Super 8. Claro que o filme de Monteiro não foi filmado em Super 8, mas há essa cena. Depois temos uma cena de namoro entre o pai e a mãe bem romântica. E no final do filme temos os dois transando realmente – os dois nus e com toda naturalidade.
O fundamental dessas cenas nos dois filmes não é simplesmente narrar uma estória. Há certamente uma busca de encontrar o que é o cinema, de uma forma que não seja obrigatoriamente ligada a uma produção industrial. João César sempre fugiu da submissão ao cinema de produção industrial. Ele queria ser e foi sempre um grande artesão.
João César Monteiro era do interior de Portugal. Seus pais eram antifascistas declarados. Aos 15 anos, ele foi morar em Lisboa e lá estudou seus cursos normais. Com a ajuda da Gulbenkian, foi estudar numa escola da Inglaterra, a London Film School. Exerceu a crítica cinematográfica com certa agressividade de estilo. Escreveu livros.
Sem dúvida, é um artista fundamental para o cinema mundial.
(Olinda, 16. 2. 21)
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7ª AULA DE LUIZ JOAQUIM
Assisti agora há pouco à sétima aula do curso Cinema Pernambucano – Do Silencioso a Bacurau, ministrado por Luiz Joaquim. E me interessou bastante, porque a década de 80 do século 20 já não foi tão bem acompanhados por mim como crítico e jornalista. De certa forma, já me sentia cansado do trabalho jornalístico e não acompanhava com tanto afinco de conhecer.
É claro que conheci, mas com certa superficialidade, com exceção do trabalho de uma figura como Fernando Spencer e outros como Jomard Muniz de Britto. Mas o pessoal da Universidade Federal, que inclusive formou o grupo VanRetrô, só vim a conhecer depois que vários deles se tornaram bastante conhecidos. A aula de Luiz Joaquim me ajudou a lembrar e conhecer melhor alguns deles.
Gostei muito de ter revisto, depois de uns 40 anos, o filme de Cláudio Assis Soneto do Desmantelo Blue, esse curta que foi tão importante para lançar essa geração de gente ligada a cinema nos anos 80. Essa nova visão agora me confirmou o que eu pensava desse filme, e certamente me fez ver coisas mais específicas. Inclusive a presença do pessoal de Caruaru com o Vital Santos aparecendo como um roteirista do filme junto com Cláudio. E isso sem dúvida esclarece a presença de tanta gente de teatro e os diálogos em estrutura teatral.
Mas isso não como submissão ao Teatro – e, sim, como forma de criação forte e expressiva. Conheci muita gente dos que lá estão, inclusive Vital, embora não me recorde de todos os nomes. Uma abordagem especial da poesia e da figura de Carlos Pena Filho com uma simpatia extrema, mostrando que, apesar de ser alguém que se relacionava com generais, era um poeta de extrema sensibilidade poética e social. Não fui próximo de Carlos Pena, mas algumas vezes que o encontrei fui tratado como amigo. E me lembro de quando ele morreu, era perto de um Carnaval, e num baile de carnaval no Português, bêbado, encontrei com Ronildo Maia Leite, e comecei a chorar desbragadamente por causa da morte de Pena.
Já assisti às sete aulas de Luiz Joaquim e espero assistir às cinco que ainda vão ser realizadas.
(Olinda, 18. 2. 21)
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UMA PÉROLA DE CANDEIAS
Estou me referindo ao cineasta paulista Ozualdo Candeias, que hoje é motivação para várias dissertações ilustres dos estudantes da USP (Universidade de São Paulo), mas nos anos 70 do século passado fez filmes inteiramente “marginais”. Eu me lembro de que, nesse período, ouvi de Arruda, um dos editores do Jornal do Commercio, o seguinte comentário: “Onde já se viu um filme que se chama Meu Nome é Tonho?”. Mas esse era Ozualdo Candeias, que antes era caminhoneiro e se transformou em cineasta. Seu primeiro longa se chamou naturalmente A Margem.
Eu gosto do site Making Off, que é realmente o contrário do que é a Netflix. Enquanto este só quer saber de filmes que a grande maioria adora, o Making Off encontra sempre produções muito especiais, como este curta de Ozualdo Candeias, Lady Vaselina. É um filme de 14 minutos que se concretiza num único plano em close com três atores.
O título realmente é escrachado, mas a narrativa não. A estória foi extraída de uma obra do escritor norte-americano Tennessee Williams. A personagem central, vivida por uma parente de Ozualdo, M. Lúcia Candeias, é uma prostituta que está hospedada numa pocilga cheia de baratas. Mas a senhoria, vivida por Vilma Ferreira, só quer saber que ela pague a mensalidade do quarto. Temos uma discussão em tom sofisticado entre uma e outra. E no meio temos a intervenção de um hóspede, que é um escritor decadente, e esse personagem é representado por Roberto Brant, que muito depois ficou conhecido como o cineasta – um dos mais sofisticados do Brasil – Beto Brant.
É estranho como uma pessoa que vinha de uma profissão nada intelectual pudesse estar fazendo esse filme tão sofisticado. Mas será mesmo sofisticado ou com pretensões de sofisticação?
(Olinda, 19. 2. 21)
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GODARD E A ARTE DE ENCOMENDA
Jean-Luc Godard é um artista sempre em evidência – e o que me chamou a atenção hoje foi a presença de cinco de seus filmes no site Making Off. São filmes feitos por encomenda, sendo dois documentários. Um deles, British Sounds, tem duração de 51 minutos, fala sobre a situação industrial da Inglaterra e foi co-dirigido por Jean-Henri Roger. O outro, Comment ça va, de 78 minutos, é sobre a situação do jornal e do jornalismo – Godard o dirigiu em parceria com sua mulher, Anne-Marie Miéville. São dois filmes onde a presença do estilo de Godard não é muita – mas sempre se mostram experiências não tão tradicionais de documentário.
Os outros três fazem parte de uma série que ele fez para um grupo de Moda Marithé François Girbaud. Cada filme tem a duração de apenas 3 ou 4 minutos. São publicidade. Porém realmente são raras as empresas que aceitariam esses filmetos como publicidade de suas empresas. São filmes onde o que importa são os golpes de poesia que são jogados ou dados. Num deles tem a frase: “A moda é eterna e ela quer descobrir a eternidade”. Há cenas de jovens gritando “sim” ou “não”. Uma jovem jogada num espaço alagado e um jovem que a carrega nos braços. Cortes bruscos. Isso é a publicidade de Godard.
Jean-Luc Godard passou a infância e adolescência na Suíça. Consta que sua família, de banqueiros, às vezes o ajudava. Mas em geral ele busca ganhar a produção dos seus filmes, e não buscar recursos com a família. Claro que lutar por produção quando você vive numa família riquíssima é algo especial. Mas assim ele se sente e se apresenta como independente. O melhor é que muitas vezes ele briga com os produtores. E sai ganhando.
(Olinda, 24. 2. 21)