Catarina, ceifeira, retirava o trigo do chão. Catarina, ceifada em seu trabalho, é semente, fecundou o chão.
Publicado 24/05/2020 20:27
Em Alentejo, a linda região no centro-sul de
Portugal, as paisagens estendem um paraíso de olivais e vinhas, alongam-se em
aldeias pitorescas, prados cheios de flores e florestas que respiram beleza.
Mas um fato histórico marca com sangue esse
cenário. No dia 19 de maio de 1954 foi brutalmente assassinada a jovem
camponesa Catarina Eufémia, de apenas 26 anos.
Naquela década, Portugal vivia sob a ditadura de
Antonio Salazar, que perdurou de 1932 a 1968, governando nos moldes do
fascismo, apoiado pela doutrina social do catolicismo, exercendo o nacionalismo
autoritário, orientado pelo corporativismo de Estado.
Catarina Eufémia era uma trabalhadora agrícola
no Baixo Alentejo, assim denominada a região onde a capital é Beja. Ceifeira,
como centenas de compatriotas, com três filhos pequenos, ajudava no sustento da
casa na colheita de cereais, amendoais, ervas.
A luta por melhores condições de trabalho e
salário digno vinha se intensificando desde a década de 40. Greves decorreram.
As mulheres cada vez mais participativas nas reivindicações.
Naquele dia 19, uma manhã de quarta-feira,
Catarina uniu-se a treze trabalhadoras para conversar com o feitor da
propriedade, obter um aumento de apenas dois escudos em suas exaustivas
jornadas. A Guarda Nacional Republicana foi acionada, junto com agentes da
PIDE, a polícia política salazarista, para reprimir as grevistas. Um tenente de
nome Garrajola interpelou o grupo de mulheres perguntando o que elas queriam.
– Quero apenas pão e trabalho – respondeu Catarina,
de imediato e destemida.
O militar considerou a resposta insolente e
deu-lhe uma bofetada, jogando-a no chão. Catarina levantou-se, e altiva, disse,
desafiando-o:
– Já agora mate-me.
O tenente disparou três tiros espedaçando-lhe os
ossos.
Há pelo menos três bons livros, “A Morte no
Monte – Catarina Eufémia”, de Jose Miguel Tarquini, 1974, “Anatomia dos
Mártires”, de João Tordo, 2013, e “O assassino de Catarina Eufémia”, de Pedro
Prostes da Fonseca, 2015, que abordam de forma biográfica, romanceada e até
investigativa, o que aconteceu naquele dia, o que antecedeu na vida de Catarina
Eufémia e o que sucedeu na história, tornando-a símbolo da luta contra a
exploração e a repressão, uma lenda da resistência antifascista pelo Partido
Comunista Português, sem ter sido militante.
Conta-se que além de estar com um dos filhos no
colo, de oito meses, que se machucou na queda no confronto com o tenente,
Catarina estaria grávida. “Não foi uma, foram duas mortes!”, gritaram
os trabalhadores diante o corpo no dia do enterro. O relato da autópsia, com os
detalhes dos estragos que as balas à queima-roupa fizeram é chocante.
Poetas portugueses como Sophia de Mello Breyner,
Eduardo Valente da Fonseca, Francisco Miguel Duarte, José Carlos Ary dos
Santos, e tantos outros, dedicaram belos e doloridos poemas em memória de
Catarina Eufémia.
Um deles, “Cantar Alentejano”, de
Antonio Vicente Campinas, foi musicado por Zeca Afonso em 1971, uma bela canção
réquiem gravada no disco “Cantigas de maio”.
“Acalma o furor campina / que o teu pranto não
findou / quem viu morrer Catarina / não perdoa a quem matou”, lembra um trecho
do poema.
Na foto acima, de André Paxiuta, o olhar
desconhecido de uma transeunte cruza o olhar de Catarina estampado na parede da
memória em sua cidade, Baleizão. Os verdejantes ventos de Alentejo 66 anos
depois sopram o pão de sua história. Catarina, ceifeira, retirava o trigo do
chão. Catarina, ceifada em seu trabalho, é semente, fecundou o chão.
«…sem ter sido militante…» ????
Catarina Eufémia ingressou no Partido Comunista Português com 24 anos de idade, tendo feito parte do seu Comité Local.