Eis a vida, a convivência e a memória como elementos fulcrais da resistência ao tempo corrosivo. Pelo menos como utopia, como esperança da chegada de um novo trem, que ainda não veio.
Publicado 20/07/2024 17:23 | Editado 20/07/2024 17:24
Recebo com felicidade esta notícia. Acaba de ser publicado, na Revista de Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, o texto “A comunidade que resiste: ficção e memória em A mais longa duração da juventude de Urariano Mota. O autor do belo texto é o Prof. Dr. Helder S. Rocha. Ele escreveucorajoso, necessário e fecundo ensaio sobre o romance.
A publicação Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea é uma das mais importantes da universidade brasileira, da UNB
Destaco alguns trechos:
‘Em A mais longa duração da juventude, o passado é um tempo alargado, por opção e confissão do narrador, como outra estratégia para dirimir o peso do presente e para forçar a reconfiguração da marcha que quer impor um futuro sobreposto e vitorioso. Vejamos mais um trecho do romance em que a questão é posta e refletida:
‘Lembrar? Não, é tão vivo, que a voz me fala: vivemos hoje o que o calendário indica ter ocorrido há 44 anos. É diferente da luz mecânica, congelada, da estrela morta há séculos, as pessoas retornam vivas com significados que não podíamos ver antes. Melhor, não retornam. Elas não saíram de nós. Continuam, na compreensão sobre elas que amadurecemos. São elas, transformadas pelo que delas só agora entendemos’
O romance de Mota não opera a manutenção de uma imagem fixa e cristalizada da militância e da resistência no passado, mas antes reivindica, no presente da escritura e no sempre presente da leitura, espaços na história contemporânea para os pequenos feitos daqueles grandes indivíduos que presenciou como resistentes solitários e anônimos. Trata-se do processo estético e revolucionário interminável do escritor engajado, aqui tanto o autor de ficções quanto o historiador e o jornalista, de “escovar a história a contrapelo”, como assinalou Walter Benjamin (2020, p. 74) em suas teses Sobre o conceito de História.
Por outro lado, como resposta ética e estética, a ficção que rememora dá continuidade à existência do comum, da relação de afeto e de reconhecimento dos gestos do outro no outrora. Essa constatação da perda não é motivo para o encerramento da narrativa de resistência no romance de Mota . Como o narrador/autor reflete:
‘A resistência, que é vida, se faz na brevidade pelas ações e trabalho dos que partiram e partem. Mas nós, os que ficamos, não temos a imobilidade da espera do nosso trem. Nós somos os agentes dessa duração, o trem não chegará com um aviso no alto-falante, “atenção, senhor passageiro, chegou a sua hora”. Até porque talvez chegue sem aviso, e não é bem o transporte conhecido. O trem é sempre de quem fica. E porque somos agentes da duração, a nossa vida é a resistência do fugaz. Nós só vivemos enquanto resistimos. Nós alcançamos a imortalidade, isto é, o que transcende a sobrevivência ao breve, porque a imortalidade não é a permanência de matusaléns decrépitos, nós só a alcançamos pelo que foi mortal, mortal, e sempre mortal não morreu’
No caso da engrenagem ficcional, o seu raio de alcance na significação do horizonte sensível das relações sociais só será efetivado quando o seu comprometimento com a herança ética transgredir os limites da prosa de entretenimento e da informação de superfície. Ficcionalizar, aqui, é fazer política.
Todavia, tratando-se do romance de Urariano Mota , o jogo fictício da montagem, da desmontagem e da remontagem mnemônica, por sua vez, sugere uma observação crítica sobre fatos históricos, agora reorganizados pela arte, por meio de uma estética que envolve outro pensamento, além de outros gestos compreensivos, o que convida o leitor atento e interessado a repensar que história e literatura não são opostas.
Eis a vida, a convivência e a memória como elementos fulcrais da resistência ao tempo corrosivo. Pelo menos como utopia, como esperança da chegada de um novo trem, que ainda não veio. O que Mota (2017) tenta como sujeito histórico, tanto como narrador e personagem, e mais ainda como autor da ficção, em que se faz narrador e personagem, é esticar a corda, prolongar a narrativa, emendar a história, e para tudo isso a linguagem se faz necessária, não sem os seus silêncios inerentes. No caso desse romance e de toda a arte verbal que escolhe retomar o passado para questionar os desvãos e os apagamentos, escrever, trocar palavras, articular sintaxes, cruzar nomes de pessoas, de lugares, de sentimentos e de sensações com datas e uma infinidade de sinais gráficos, não é luxo nem superfluidade de quem se sustenta no sistema mercantil editorial; pelo contrário, é ativismo e arte que servem de resposta e contraponto ao neoliberalismo livresco, ou apenas um grito de discordância perante a marcha cotidiana
Vejamos como o narrador do presente e também personagem do passado no romance de Mota reflete a questão:
‘Quarenta e seis anos depois a pergunta ganha outro significado. No dia do enterro, com o cadáver saído do necrotério, quando a repórter perguntou “quem era Luiz do Carmo?”, eu respondi que para ele ainda não havia soado o momento da justiça. […] Se a vida passa e os jornais não a percebem, que dirá de uma pessoa fundamental que não é celebridade? Mas o impossível ali eu recupero. Era irônico que, perseguido na ditadura como um terrorista, ainda depois, no tempo dos anistiados, Luiz do Carmo não conhecesse a justiça. Se antes havia tido a negação absoluta de direitos e de leis democratas, agora nos anos de governo eleito pelas urnas, quando podia ir e vir, discursar e escrever, ele continuava sem justiça. Mudavam-se os tempos, mudamos nós, e continuávamos mudos para todos. Pois o reconhecimento público não chegava. […] Em seu favor, ela poderia dizer que seu hard de famosos merecia receber um upgrade. E o seu chefe, igualmente desconhecedor, a socorreria mais ferino com a frase “A memória dos jornais é bem seletiva”. […] A culpa — se usamos a palavra redutora — era do conjunto da sociedade que esmaga a todos, que pulveriza tudo como um pozinho à toa’
No trecho supracitado, o pensamento é tecido por aquele que ainda vive e lembra, do amigo que observa, na agora ausência de um companheiro de antes, uma lenta e silenciosa desaparição do que foram, pelo menos para os que estão, os que virão. Apesar da existência “muda”, da constatação de uma prática e de uma dinâmica própria da atualidade, de uma política da desmemória e da redução esmagadora da vida — “que pulveriza tudo como um pozinho à toa” (Mota) —, o presente sempre inacabado da leitura do romance, diferentemente da “memória dos jornais”, insiste em reclamar os laços, as relações, os afetos e as recordações. Enquanto o que se publiciza nos anais do cotidiano e o que se celebra como feito estão aquém do que ainda não teve página oficial na história coletiva, o jorro mnemônico do solitário autor de ficções se apresenta como uma possível, entre poucas, oportunidade de inscrição de convivências que lutaram com a própria vida para a existência deste hoje que coabitamos.
Já em outra passagem do romance lemos:
‘De muitos que atravessaram na militância clandestina aqueles anos, poderíamos falar de uma Vida Curta e Triste sob o terror de Estado. E de todos podemos dizer que tínhamos vida dupla, uma oculta e outra legal. Sendo mais preciso, tínhamos uma existência legal e uma vida clandestina. Na primeira, mantínhamos uma dolorosa e sufocante aparência de ser, em si mesma uma farsa que representávamos sob ameaça de morte. Na segunda, éramos quase livres, pois mantínhamos um espaço de humanidade, de pessoas apesar da opressão. Uma vida, enfim, que sorria para nós como prometida amante. Era, portanto, na sua negação legal, um suplício de Tântalo. Quando queríamos pegar a flor vermelha, papoula, narcótica e doce, ela se afastava. E quando apressados íamos tomá-la nas mãos, a morte nos imobilizava. Isso conduzia também a uma dupla moral. Os que nos submetíamos à tortura da sobrevivência em trabalho alienante, onde amargávamos ser jovens bobos e calados, estranhos, contribuímos para os clandestinos que levavam a vida gloriosa. Natural e necessária a contribuição. Natural a glória, porque estavam no front. Mas os da retaguarda estaríamos a salvo se os da frente caíssem? Quase nunca. Se não se vê uma ironia nesta frase, digo que o terror era democrático. A sociedade sem classes que sonhávamos, em uma versão macabra o terror fascista realizava. Onde antes a tortura e o assassinato de presos haviam sido exclusivos de negros e pobres, agora atingiam a todos. Em uma só fila, com faces idênticas todos éramos terroristas. Assim nos chamavam em infame versão os terroristas de Estado. No entanto, de terror era a vida de animais caçados’.
Os recursos narrativos da ficção também questionam os arquivos existentes, assim como a ausência de outros, caso em que o romance de Mota parece intervir de forma contundente ao reivindicar a existência de uma comunidade invisibilizada no ontem por necessidade de sobrevivência e no hoje por manutenção de uma injusta relação com os espectros”.
Leia aqui a íntegra do texto.