Publicado 28/09/2021 11:26
O mundo anda apressado e pragmático, inundado por informações vindas de todas as fontes. Sobra pouco tempo para as coisas do espírito. As leituras andam pautadas pelos novos conhecimentos: revolução tecnológica, inteligência artificial, biotecnologia, economia comportamental. E, também, por algumas aflições da nossa época: mudança climática, recessão democrática, destruição da Amazônia, pandemia. Eis que, de súbito, Miguel Matos nos pede uma pausa na pressa, no pragmatismo e nas aflições para um momento lúdico: um pouco de literatura. Da melhor que já se produziu no Brasil. Com padrão mundial.
Embora formado em Direito e Jornalismo, Miguel é conhecido pelo público como empresário, empreendedor digital e fundador do popular informativo Migalhas, que revolucionou o tratamento de temas jurídicos na mídia especializada. O que muitos talvez desconheçam é o intelectual refinado, espirituoso e criativo que ele discretamente abriga no espírito inquieto. Mas um observador atento já teria captado alguns indícios, como, por exemplo, sua coordenação e seleção de textos da preciosa série “Migalhas Literárias”. São pequenos grandes livros nos quais se colhem pérolas do pensamento dos grandes autores de língua portuguesa, como Eça de Queirós, Padre Antônio Vieira, Euclides da Cunha e Joaquim Nabuco, entre outros. Porém, neste livro, ele foi mais longe: elaborou um código, consolidando em uma obra única o que andava disperso em textos variados: a relação de Machado de Assis com o Direito.
Considerado por críticos literários “o mais completo homem de letras do Brasil” [1], Machado de Assis já mereceu a edição de coletâneas diversas, obras completas, estudos críticos, monografias e biografias várias [2]. Foi tema também de livros clássicos de juristas como Raymundo Faoro [3] e economistas como Gustavo Franco [4]. Mas o “Código de Machado de Assis” é diferente de tudo o que já foi publicado. A despretensão, confessada modestamente pelo autor, não é capaz de encobrir a extensão, a profundidade e a riqueza da pesquisa, com sua característica inédita: localizar na extensa obra machadiana — romances, contos, poesias, crônicas e mais — cada migalha jurídica, documentando a influência que o Direito exerceu sobre o notável escritor. São passagens repletas de personagens do mundo das leis, como advogados, juízes, desembargadores e tabeliães. Também comparecem bacharéis, escreventes e até rábulas. Munido de lupa, Miguel localizou cada um deles, com nome, sobrenome e o contexto em que aparecem nas obras. Trabalho de garimpeiro de pedras preciosas que, tendo em vista o talento de Machado, já vêm lapidadas. Diferentemente do garimpo tradicional, no entanto, o esforço de localizá-las exige mais talento do que sorte.
O livro revela um Machado de Assis progressista, à frente do seu tempo, como documentam passagens pinçadas e transcritas por Miguel. Em crônica de 1865 — ou seja, em pleno Segundo Reinado —, Machado defendia eleição direta e fim do voto censitário, para tornar efetiva a soberania popular! Aí pela mesma época, denunciou o machismo da sociedade e, em crônica de 1877, defendeu o voto feminino, que só viria a ser adotado no Brasil mais de 50 anos depois, em 1932. Detalhe destacado no livro: a Nova Zelândia, país pioneiro na implantação do voto feminino, só o fez em 1893. Em outra crônica, celebrando os cinco anos da Lei do Ventre Livre, afirmou que ela deveria ter vindo 30 anos antes! Se algumas de nossas lideranças atuais fossem chegadas a livros e à leitura, não tenho dúvida de que, postumamente, acusariam nosso imortal escritor de comunista.
Tocando-me o coração, Miguel pinçou algumas passagens em que Machado fala de Vassouras, minha adorável terra natal, onde até hoje tenho amigos de infância. Numa das crônicas, ele cogita que Vassouras seria uma das três cidades cotadas para capital do estado do Rio, desbancando Niterói. Nunca soube disso e, se tivesse acontecido, teria alterado a vida da cidade e a minha própria. É que nossa família se mudou de Vassouras para o Rio quando meu pai passou em um concurso para promotor de Justiça. Se Vassouras fosse a capital, possivelmente não precisaríamos ter saído de lá. Em suas anotações a um dos contos, Miguel assinala a surpreendente improbabilidade estatística: a cidade, com 35 mil habitantes hoje em dia, já deu quatro ministros do Supremo Tribunal Federal. Um deles foi Edgard Costa, nome da rua em que morávamos e onde até hoje mantemos nossa casa. Para quem acredita que o universo manda sinais, esse pode ter sido um deles.
Eu poderia seguir, indefinidamente, destacando passagens selecionadas por Miguel. Como o antológico conto “O alienista”, que com justiça qualificou de obra-prima. Aliás, uma Casa Verde hoje em dia… Sei não. E o memorável “Teoria do medalhão”, deliciosamente irônico. Ali se colhe a instrução dada pelo pai ao filho para que não pense muito, não se aflija com ideias próprias e responda a perguntas complexas com platitudes pretensiosas: “Antes das leis, reformemos os costumes”. Do conto “Astúcias de marido”, colhe-se essa passagem emblemática, apta a retratar alguns personagens da vida brasileira:
“Valentim não tinha convicções políticas. Seguia a regra de não se opor às paixões, nem contrariar opiniões. Era liberal com quem o fosse, e conservador se assim preferisse o interlocutor. Quando indagado sobre qual seria, afinal, sua preferência, fez um longo discurso, ‘tão bem deduzido, que contentava as duas opiniões'”.
Não posso concluir sem dar a Miguel Matos o crédito de haver desvendado um dos maiores mistérios da literatura brasileira. Usando da melhor técnica de investigação literária, o autor do “Código de Machado de Assis” declara, peremptoriamente, que Capitu era culpada: ela de fato traiu Bentinho! A pista incriminadora veio de outro romance, “A mão e a luva”. Qual foi a prova cabal? Caro leitor deste prefácio, não darei o spoiler. É o caso de ir aos autos, ou melhor, ao livro, onde se identifica a evidência irrefutável.
Sei de prefácios que são feitos sem a leitura da obra respectiva. Procuro evitar esse caminho por duas razões. A primeira: não se deve recomendar algo que não se provou. A segunda, todavia, é ainda mais importante: se o livro merece ser prefaciado, merece ser lido. Faço essa anotação final para me penitenciar por haver atrasado em muitas semanas a publicação deste “Código”: é que o li, da primeira à última página, com prazer e proveito. E o fiz, ora relembrando o que já havia lido em Machado, ora conhecendo o que não tinha tido oportunidade de ler e, sobretudo, redescobrindo sutilezas que me haviam escapado na primeira leitura. Lembrei-me aqui de um verso clássico de T.S. Elliot, em tradução livre:
“Na vida, nunca cessamos de procurar.
E o final de toda procura
Nos leva ao ponto de onde partimos
Para conhecê-lo pela primeira vez”.
Na minha primeira juventude, no Rio de Janeiro — atualmente, já estou na terceira —, havia um concurso de fantasias no Hotel Glória, no qual os candidatos concorriam em uma de duas categorias: luxo ou originalidade. A categoria luxo aferia o trabalho, o detalhe e a sofisticação; a de originalidade media a criatividade, a inovação, a ousadia. Pois bem: se houvesse algo parecido em relação à literatura, o “Código de Machado de Assis” mereceria o prêmio nas duas categorias. Trata-se de um trabalho de artesão, feito com fina sensibilidade; e a ideia de garimpar passagens jurídicas no imortal escritor foi uma grande sacada. E acentue-se: não é apenas a história contada. É a história documentada, inclusive com recortes, fotos e gravuras que o tempo não consumiu.
Em suma: tive o privilégio de ler, em primeira mão, um trabalho original e criativo, bem pensado, bem escrito e bem pesquisado. Miguel Matos produziu um livro à altura do homenageado. Não é pouca coisa.
* Texto publicado como prefácio do livro “Código de Machado de Assis — Migalhas Jurídicas”, de Miguel Matos (Editora Migalhas, 592 páginas).
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[1] Afrânio Coutinho, na densa introdução a Machado de Assis: Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2006.
[2] A biografia pioneira teria sido a de Lucia Miguel Pereira, Machado de Assis: estudo crítico e bio- gráfico, 1936, segundo pesquisa de Fabio de Sousa Coutinho, Lucia: uma biografia de Lucia Miguel Pereira. Brasília: Outubro Edições, 2017.
[3] Raymundo Faoro, Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.
[4] Gustavo H.B. Franco, A economia em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Zahar, 2007
Fonte: Conjur