Desde sua “reabilitação” até os dias atuais, o espírito inovador e irreverente oswaldiano vem inseminando inclusive as novas linguagens da publicidade, da mídia eletrônica e da cultura pop
Publicado 16/02/2022 18:05 | Editado 16/02/2022 18:10
A participação política de Oswald de Andrade foi a corrente sanguínea que alimentou suas peças de teatro, O Rei da Vela (1933), O Homem e o Cavalo (1934) e A Morta (1937), obras em que é notável a presença de elementos similares aos trabalhados por Samuel Beckett, Ionesco e, mais tarde, Arrabal, no chamado Teatro do Absurdo. O conteúdo panfletário aliado à invenção estética nos faz pensar, por outro lado, em obras como O Percevejo, de Maiakovski. A renovação do teatro intentada por Oswald, porém, só seria concretizada no final dos anos 60, com a montagem de O Rei da Vela por José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina, evento que marcou o nascimento do Tropicalismo. Do período militante de Oswald devemos citar, ainda, os dois romances de tese Marco Zero, I e II (Chão e A Revolução Melancólica) e o jornal O Homem do Povo, dirigido por ele e Pagu, empastelado por estudantes de Direito do Largo de São Francisco. O coroamento dessa fase, no entanto, foi menos épico do que lírico: o “sentimento de mundo” do autor encontrou sua forma ideal de expressão na poesia.
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O Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão (1942), dedicado a Maria Antonieta d’Alkmin, é um longo poema de amor, dividido em 15 peças curtas, compostas sob o impacto da II Guerra Mundial. Este é o trabalho de maior envergadura lírica do poeta; já no título, há uma paráfrase do texto bíblico atribuído a Salomão, matriz do pathos erótico-amoroso do Ocidente. Em vez do humor ácido destilado em outras retortas, o que predomina neste livro “humano, demasiado humano” é a fusão do eu lírico com o eu social, participante: a celebração da mulher amada mistura-se ao brado do tribuno que expressa seu compromisso de solidariedade pelos povos agredidos pelo nazismo, e também sua esperança de um novo mundo, que surgiria a partir dos “assombrados/ brados de vitória/ de Stalingrado”. O Cântico retoma os princípios estéticos da poesia “pau-brasil”, como a economia verbal, a construção geométrica, os jogos paronomásicos, o uso do ready-made, em uma base rítmica funcional. Como diz Haroldo de Campos: “O procedimento estilístico que parece ter maior incidência no Cântico é a técnica de repetições, seja o andamento anafórico e paralelístico, seja a simples reiteração topológica de palavras iguais ou parônimas. Aliás, se se pode identificar uma célula rítmica básica na construção sonora dos textos oswaldianos, este será a repetição de tipo aliterativo (coral caído, duro dorso), agnominativo (bonançosa bonança) ou em eco (mim/ Alkmin).” No poema canção e calendário, essa arquitetura textual alcança seu ponto mais alto, em versos como: “Não quero mais/ A inglesa Elena/ Não quero mais/ A irmã da Nena/ Não quero mais/ A bela Elena / Anabela/ Ana Bolena/ Quero você/ Toma conta do céu/ Toma conta da terra/ Toma conta do mar/ Toma conta de mim/ Maria Antonieta d’Alkmin/ E se ele vier/ Defenderei/ E se ela vier/ Defenderei/ E se eles vierem/ Defenderei/ E se elas vierem todas/ Numa guirlanda de flechas/ Defenderei/ Defenderei/ Defenderei”. O “antropófago de cadillac”, vestido de folhas de bananeira, sarcástico e sensualista, reconciliou-se com a tradição lírica, mas com o estado de espírito de Breton, de Maiakovski: o elogio à mulher amada se confunde com a defesa da poesia e da revolução social, em um mesmo ideal libertário.
O Escaravelho de Ouro (1945) é a derradeira composição poética de Oswald de Andrade. O título da coletânea é uma citação do conto criptográfico de Edgar Poe, e a obra tem mesmo o caráter de código, de mensagem cifrada. Assim como o Cântico, é um poema longo, dividido em 16 partes, dedicado a sua filha Antonieta Marília. Neste livro, de indisfarçado pessimismo, o poeta faz uma antielegia ao “admirável mundo novo” que surgiu do pós-guerra, dominado pela política reacionária de Truman (e, no Brasil, do marechal Dutra), pelo consumismo, pela banalidade da indústria cultural, cujo emblema mais ruidoso era o cinema de Hollywood. Esse estado de espírito de Oswald é sintetizado em poemas como plebiscito (“Venceu o sistema de Babilônia/ e o garção de costeleta”) e páscoa de giorgio de chirico (“Ninguém quis comprar o poeta”). Dissidente do mundo burguês, o poeta rompeu, depois, com o Partido Comunista e o “Dogma da Imaculada Revolução”, e colocou em xeque a própria ideia de utopia em seu ensaio A crise da filosofia messiânica, que retoma princípios da Antropofagia, como o conceito de matriarcado, mesclados à influência do existencialismo de Sartre e Camus. O trabalho foi apresentado como tese de mestrado a uma banca examinadora da Universidade de São Paulo e, é claro, foi recusado, por não se enquadrar nos estreitos critérios acadêmicos; ao sair da sala, o poeta assoou o nariz na bandeira nacional.
De 1945 até sua morte, em 1954, Oswald de Andrade encontrou-se sozinho, sem dinheiro, com poucos amigos e muitos desafetos. Nesta época, em São Paulo e no Rio de Janeiro, os poetas da Geração de 45, viúvos de Olavo Bilac, insurgiram-se contra o Modernismo, saudosos do soneto e das chaves de ouro, hostilizando o autor de Pau-Brasil. Apesar de magoado com as críticas, o poeta não perdeu o senso de humor. Certa vez, em uma conferência, Lêdo Ivo acusou Oswald de ser o “calcanhar de Aquiles do Modernismo”, ao que o antropófago retrucou, chamando seu contendor de “chulé de Apolo da Geração de 45”. A plateia desabou em risos. Em seu exílio artístico imposto pelo provincianismo beletrista de Pindorama, Oswald foi rejeitado, excluído das antologias, dos currículos escolares e do mercado editorial durante décadas, como um canibal clandestino. Por fim, foi entronizado como precursor da Poesia Concreta e de outros movimentos de vanguarda que transformaram a cultura brasileira, a partir dos anos 60. Desde sua “reabilitação” até os dias atuais, o espírito inovador e irreverente oswaldiano vem inseminando inclusive as novas linguagens da publicidade, da mídia eletrônica e da cultura pop, fazendo cumprir o vaticínio do poeta: “a massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico”.