Voltaremos ao diálogo?

Democracia é debate, é contradição, é oposição de idéias. A partir dessa oposição, o cidadão formará sua opinião, acertando ou não. Talvez os cidadãos errem, mas pelo menos terão se manifestado

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

Tinha prometido a mim mesmo. Em prol da minha sanidade mental. Procurar escutar o mínimo de notícias e não me pronunciar sobre temas excessivamente polêmicos. Mundo polarizado, ouvidos surdos, diálogo quase inexistente, melhor não se expor.

Democracia, valor maior que orienta a sociedade que queremos. Várias definições. Morin a define com clareza, para mim. E nessa definição vejo minha contradição.

“Democracia é debate, é contradição, é oposição de idéias. A partir dessa oposição, o cidadão formará sua opinião, acertando ou não. Talvez os cidadãos errem, mas pelo menos terão se manifestado.”

Acreditando nisso, como podemos nos isolar, como nos afastamos dos debates, como evitarmos contatos com os que de nós discordam?

Mundo polarizado. O confronto é explícito. Difícil convivência. Melhor evitar contatos, melhor evitar atritos. Os dois lados, no Brasil e no Mundo, perdem. Criam-se falsas verdades, exploram-se detalhes que se transformam em monstros. As palavras têm que ser medidas, os posicionamentos não são discutidos em sua essência, apenas na sua superficialidade, nos deslizes aparentes.

Uma guerra insana. O conflito no Oriente Médio não acaba. Repercute no mundo. Antissionismo e antiislamismo proliferam e ganham proporções globais. Causam muita preocupação. Preconceitos são explicitados.

Falas lamentáveis, sem contextualização histórica, servem para alimentá-los. Se de um lado o ódio contra os judeus parece crescer a passos vistos, mesmo para quem vive em país distante do conflito, o ataque aos árabes cresce violentamente, principalmente pelos defensores das doutrinas ocidentais de direita. Esquerda e direita tomam partido. Os dois estão errados.

Recebo de um amigo, texto para me posicionar. Cheio de sandices, uma visão doutrinária da direita intelectualizada.

Chega a sugerir que a dita democracia liberal estaria sendo fortemente ameaçada. Democracia para os poderosos entendo, difícil de acreditar que seja universalizada para a totalidade das populações. Bem como, que seja baseada na doutrina do liberalismo clássico que exigiria um mundo menos desigual. Liberdade acompanhada por igualdade de oportunidades, o que nunca existiu.

Falsas verdades, procura de bodes expiatórios, criam-se teorias e conceitos infundados. Admite que terrorismo seja sempre apoiado pelas esquerdas, que na busca de combater o chamado imperialismo, a esquerda justifica qualquer violação dos direitos humanos e da liberdade de expressão.

À semelhança dos “Protocolos dos Sábios do Sião” que estereotiparam os judeus como origem dos males da humanidade, cria um novo conceito que vai destruir a humanidade. O objetivo dessa “nova força” seria combater, se possível aniquilar, o mundo que tem seus alicerces nas visões e padrões de comportamento europeu e estadunidenses.

A aliança entre o Islã e as Esquerdas criaria o Islamoesquerdismo. Uniformiza para o mal todo o Islã e todos aqueles que se dizem de esquerda, vendo-os como criadores de um mundo de ódio na modernidade.

Não vale a pena perder tempo em analisar aquele texto, fruto de ignorância, totalmente descolado da realidade prática, apenas estar atento para possíveis generalizações que dele possam vir e que possam trazer conseqüências desastrosas. A história nos mostra que a origem do fascismo e do nazismo também se dá com movimentos que pareciam isolados e sem grandes repercussões.

Leio, paralelamente, um livro de um dos autores mais instigantes que conheço, Edgar Morin. História(s) de Vida, publicado na primeira edição mundial em 2022.  No Brasil se encontra editado pela Bertrand Brasil em 2023. Uma série de entrevistas para Laure Adler. O autor na idade avançada de mais de 96 anos.

Chamo a atenção para este texto, trás alguns ensinamentos que vale serem ressaltados. Não farei uma resenha, ainda não acabei de ler, mas gostaria de expor alguns trechos:

“Estamos assistindo também ao retorno dos bodes expiatórios, do ódio do outro, ao judeu, ao árabe. Essa barbárie está de volta à história com regimes autoritários que estão surgindo em quase todos os lugares, mais recentemente no Brasil (referia-se ao período de Bolsonaro). Vemos terríveis forças de retrocesso em ação. Há também uma segunda barbárie, que vem de dentro da civilização; esta, por trás de suas conquistas que acreditávamos irreversíveis, desenvolve uma maneira de apreender a humanidade e o mundo pelo prisma do cálculo, com PIB, crescimento, estatísticas e sondagens. Ora, tudo que é humano escapa a essa visão. Essa concepção do cálculo está ligada ao enorme desenvolvimento do lucro, à degradação das antigas solidariedades que existiam tanto nas grandes famílias, nas cidadezinhas, no trabalho, nas oficinas, nas fábricas.“

Isso caracteriza o mundo moderno, mundo que se torna insensível, que admite pessoas com fome morrendo bombardeadas, vivendo em desespero. Terrorismo tem que ser combatido energicamente, no entanto, as populações civis não podem sofrer com uma guerra que não tem fim. Como diz o mestre, o humano foge à visão que se tem para o futuro da humanidade, para sua evolução.

Bom saber que a história nos dá lições. Mais adiante, no texto, é dito:

“Infelizmente, o pior aconteceu na Argélia e foi preciso suportar as conseqüências. É também o que está ocorrendo atualmente no conflito entre Israel e Palestina. Há uma deterioração de ambos os lados, não de apenas um.”

Notem que isso já era notado antes do atual conflito, antes dessa guerra infindável que gera milhares de mortes e ódio que pode se perpetuar por gerações.

A entrevista aponta caminho do que parece ser o racional, o mais adequado.

“O mais terrível é que a única política razoável para salvar Israel no futuro está na possibilidade de se integrar naquele Oriente Médio, em vez de ser potência resolutamente hostil lá. Eu não só critico o que o exercito israelense faz e continua a fazer, como também acho que a situação do povo palestino é desesperadora e desesperada.”

Quanto às “verdades” que são criadas, acho que Morin tem razão quando diz:

“Acredito principalmente que pode haver verdades contraditórias. Pascal dizia que o contrário de uma grande verdade não é um erro, mas outra grande verdade. Nem sempre isso acontece, ainda que muitas vezes ocorra. Portanto eu tento assumir essas duas verdades contrárias.”

Se entendermos verdades como visões do mundo, importante escutar as de diferentes lados com respeito para poder chegar a caminhos que levem à paz duradoura, não com sandices e criação de monstros que jamais existiram, mas podem vir a se concretizar atiçados por espíritos maldosos. E, importante, não fazer generalizações que estigmatizam pensamentos e povos. A situação atual pode levar ao aumento dos preconceitos e ódios.

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