Você Não Está Sozinha: a luta contra La Manada

Documentário relata o estupro coletivo de uma jovem na madrugada das festividades de San Fermin em Pamplona na Espanha, em 2016

Imagem: Divulgação

Um documentário impactante sobre o “Caso da Manada”: relata o estupro coletivo de uma jovem na madrugada das festividades de San Fermin em Pamplona na Espanha, em 2016. A festividade religiosa,  ocorrida no mês de julho em homenagem a São Firmino no centro histórico da cidade, refere-se a uma tradição ibérica relacionada aos touros, considerados por eles, como representantes das forças da terra.

A festa reúne principalmente um público de jovens usando roupas vermelhas, que permanecem aglomerados aguardando o estouro de fogos e continuam reunidos por um longo período com gritos de “San Fermin”, acenando lenços para a multidão.

O filme documentário “No Estás Sola: Luchando contra la Manada”, registra momentos da festa, períodos dos acontecimentos na cidade,  com relato da vítima e dos agressores, depoimentos de pessoas que se encontravam próximas à situação da brutalidade,  fala de policiais, advogados, promotores e magistrados bem como imagens de arquivos,  abordando um dos casos mais sombrios e chocantes da Espanha dos últimos anos, apresentando com narrativas tocantes um dos dias da festa, que dura 9 dias, de 06 a 14 de julho.

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O fato narrado, ocorreu no primeiro dia da festa. Ainda, registra falhas do sistema judicial no com relação à violência sexual, com responsabilização da vítima. Perguntas feitas à jovem agredida sexualmente, como:  Você se senta sempre assim? Você não disse não? Você não resistiu e nem tentou fugir? Você se deixou ser beijada?

Ela, responde: Não, estava em estado de choque, só queria que passasse logo, só queria bloquear tudo! E, em outras perguntas dirigidas à jovem, há uma clara revitimização  e uma cobrança para um comportamento heroico: ou seja, que lutasse bravamente contra seus agressores, tentando descredibilizar seu depoimento, revelando o quanto o pensamento e o sistema patriarcal está impregnado no conjunto das sociedades e em particular no mundo jurídico.

Isso está ligado à cultura do estupro, que revela atos e comportamentos machistas, sexistas e misóginos, de responsabilizar uma mulher por ter sido estuprada. Isso  acaba por negligenciar a vítima e permitir violências sexuais, naturalizando-as.

Esse fato, infelizmente recorrente em diversas partes do mundo, mobilizou milhares de meninas e mulheres bem como a cidade de Pamplona, toda a Espanha, e diversos países do globo através do movimento ##MeToo (eu também).

O movimento também se somou ao repúdio contra o feminicidio de Nagore Laffage, de 20 anos de idade, ocorrido no dia 07 de julho de 2008, em plena festividade de São Fermino. Ela, estágiaria de enfermagem e ele, José Diego Yllanes de 27 anos, fazia residencia em psiquiatria. Ela resistiu ao estupro,  o recusou e foi assassinada, sendo espancada até a morte e esquartejada. Seu corpo foi encontrado com  36 golpes: mandíbula e crânio fraturados, além de estrangulada. Esse triste episódio, provocou uma grande repercussão midiática e reação social.  Em 2017, sua mãe participa dos movimentos contra o estupro coletivo, ela dá um depoimento, quando critica o jurado que fez uma única pergunta sobre a filha, se era namoradeira,  mais uma vez a responsabilidade recai sobre a vítima,  deixando a mãe totalmente descrente  daquele julgamento preconceituoso e opressor.

No Brasil, o  estupro é reconhecido pela legislação como um crime contra a dignidade sexual, o estupro é uma das violências que mais atinge as mulheres e crianças brasileiras. A estimativa é de que um caso seja cometido a cada sete minutos no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Em 2022, o Brasil registrou o maior número da história de casos de estupros – considerando também estupros de vulneráveis, 6 em cada 10 vítimas tinham até 13 anos, são meninas e negros, e é realizado dentro de casa por pessoas da relação da vitima, a maioria pai, padrasto, tio, pessoas que deveriam proteger.

Sobre o processo de revitimização, e para que mulheres e meninas alvos de violência sexual não sofram durante investigações e julgamentos e visando coibir a  prática de desqualificar a mulher vítima de violência sexual durante a instrução e o julgamento destes crimes, o Plenário do Supremo Tribunal Federal começou a julgar na quinta-feira (7/3) a ação da Procuradoria-Geral da República que busca proibir questionamentos sobre a vida sexual pregressa das vítimas durante a investigação e o julgamento de crimes sexuais.

Ao acompanhar o documentário, lembrei do impactante caso de Mariana Ferrer, após repercussão através do site The Intercept, que ao  publicar um vídeo de uma audiência virtual do caso ocorrido em Santa Catarina, nos deixou em choque, pois o advogado responsável pela defesa do réu André Camargo de Aranha (que foi inocentado da acusação de estupro), intimidou a vítima proferindo palavras de profundo desrespeito, tudo sob a complascência do juiz. Em 14 de novembro o Conselho Nacional de Justiça, decidiu por unanimidade, punir com pena de advertência o juiz Rudson Marcos, por sua negligência com relação ao comportamento do advogado.

A lei Mariana Ferrer, de nº 14.245, publicada no Diário Oficial da União (DOU) em 23 de novembro de 2021, que  prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos, surgiu depois da divulgação de imagens de uma audiência de instrução versando sobre crime de estupro em que a vítima, Mariana, teve sua intimidade inutilmente exposta pela defesa. A lei  tem por objetivo central reprimir e prevenir a chamada “revitimização”, ou vitimização secundária, permitindo o aumento da pena pelo crime de coação no curso do processo, já previsto no Código Penal. Foi uma importante conquista, a partir de uma ampla mobilização do movimento feminista em nosso país, repercutindo em diversos países. A história de Mariana ficou nacionalmente conhecida e gerou uma grande comoção, fazendo com que a hashtag “#JustiçaForMariFerrer” entrasse nos assuntos mais comentados nas redes sociais, no ano de 2018.

Na Espanha, o caso de “La Manada”, além dos manifestos em todo o país, um vídeo gravado por duas atrizes feministas, com o lema “Eu acredito em você” viralizou e ocupou as redes sociais de mensagens de apoio à vítima, no ano de 2017.  No julgamento os 5 jovens foram condenados a nove anos de prisão cada um por abuso sexual. No entanto, as milhares de manifestantes de diversas cidades espanholas disseram que “não é abuso, é estupro”, provocando novo julgamento que ampliou a pena.

O documentário, está sendo exibido pela Netflix e foi dirigida pelos cineastas Almudena Carracedo e Robert Bahar, conhecidos pela premiação do filme  “O Silêncio dos Outros” (2018). As atrizes Natalia de Molina e Carolina Yuste, são as narradoras da película. Vale a pena assistir e torcer para que os agressores fossem punidos.

Lucia (assim chamada para manter o anonimato da vítima), Mariana, Julieta, Rachel, Nagore. Maria, como muitas lutaram, resistiram. Por elas e por todas, continuaremos contestando as   nefastas consequências do sistema patriarcal, do sistema capitalisa  e racista construído e legitimado historicamente, para que possamos transformar em um movimento amplo, unitário, para pavimentar um caminho de dignidade e respeito,  sororidade e equidade, um mundo sem violências e opressões.

Ficha técnica:  Você Não Está Sozinha – A Luta contra La Manada, da Netflix (2023)

Título original do filme: No estás sola: La lucha contra La Manada

Direção: Robert Bahar, Almudena Carracedo

Roteiro: Almudena Carracedo, Robert Bahar

Gênero: documentário

País: Espanha

Ano: 2024

Duração: 102 minutos

Classificação: 16 anos

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