UNE, de volta ao samba
Simbolicamente a recente ocupação pelos estudantes de seu legítimo terreno na Praia do Flamengo traz muitos significados. É bela a página dessa história que está sendo construída pelos estudantes capaz de narrar que nada melhor que um dia após o outro
Publicado 21/02/2007 19:50
“Pensou que eu não vinha mais, pensou
Cansou de esperar por mim
Acenda o refletor
Apure o tamborim
Aqui é o meu lugar
Eu vim
Fechou o tempo, o salão fechou
Mas eu entro mesmo assim
Acenda o refletor
Apure o tamborim
Aqui é o meu lugar
Eu vim …”[1]
As classes dominantes nunca se contentaram em simplesmente bater o inimigo. Em qualquer período, depois da violência e o arbítrio para derrotar seus opositores, os dominadores intentam aniquilar, de distintas formas, toda e qualquer memória de resistência daqueles que um dia ousaram questionar sua supremacia.
Com Tiradentes, como se não bastasse esquartejá-lo e manter os pedaços de seu corpo em uma salmoura enquanto eram exibidos para o povo percorrendo várias cidades mineiras desde o Rio de Janeiro, seus familiares foram excomungados até a “enésima” geração e sua casa salgada para alimentar o imaginário popular de que ali nada mais nasceria.
Na Guerrilha do Araguaia a ditadura militar não se contentou em apenas torturar e assassinar aqueles que se atreveram a protestar contra o regime autoritário. Após envolver o maior contingente militar Pós Segunda Guerra para exterminar algumas dezenas de combatentes que lutavam pela democracia em nosso país, promoveu uma “reforma agrária” na região do Bico do Papagaio (confluência entre os estados do Mato Grosso, Tocantins e Maranhão) após o fim do conflito desde que o “assentado” assumisse o compromisso de desmatar o terreno adquirido para não deixar quaisquer vestígios da “casa” dos guerrilheiros que foi a densa mata nativa que encobria a Serra das Andorinhas e suas vertentes e extensões.
Seguindo a mesma lógica, foi assim com os quilombos (notoriamente o de Palmares), em Canudos, Farrapos, na Chacina da Lapa… O objetivo sempre foi o do aniquilamento completo do inimigo que consistia também em “apagar” sua história, impedir sua continuidade, demolir sua “casa”. No Brasil, no nosso continente e em todo o mundo o inimigo de classe, historicamente, sempre agiu dessa forma.
A história do movimento estudantil brasileiro não é diferente, pelo contrário, é repleta de exemplos de investidas das elites para aniquilar a resistência e a memória da luta estudantil que sempre foi uma das pedras mais pontiagudas no seu sapato. No caso da União Nacional dos Estudantes, a invasão, o saque e a queima de sua sede pela ditadura são emblemáticos para evidenciar a tese de que além de assassinar e perseguir seus opositores, as classes dominantes precisam também destruir suas memórias, sua história, sua biografia de lutas. É a prática do terreno arrasado.
Ocorre que apesar de todas essas barbaridades cometidas e a história oficial ser aquela contada a partir do ponto de vista dos “vencedores”, ainda resta muito da história e memória de resistência dos “vencidos” que com o tempo sempre vai sendo restabelecida e recontada.
Como em outras lutas e movimentos, a maldição lançada contra os estudantes foi quebrada. Após enfrentar os anos de chumbo, ser lançada na ilegalidade, ter seu último presidente assassinado antes de ser reconstruída em 1979 ainda em período ditatorial e ter assistido de pé a demolição de sua sede, a UNE provou que são nas dificuldades que se tempera o aço mais resistente.
Simbolicamente a recente ocupação pelos estudantes de seu legítimo terreno na Praia do Flamengo traz muitos significados. É bela a página dessa história que está sendo construída pelos estudantes capaz de narrar que nada melhor que um dia após o outro para provar que as idéias justas e democráticas sempre prevalecem, apesar dos percalços e sobressaltos, nas idas e vindas da luta do povo brasileiro.
Não é uma luta ganha. Ainda falta uma última e decisiva batalha nessa guerra que teve inicio naquele sinistro 1° de abril de 1964.
Após a volta triunfal dos estudantes no último dia 1° de fevereiro, com cinco mil “soldados” retomando o terreno e mantendo sua casa sob vigilância permanente acampados no local onde funcionava o estacionamento privado ilegal, ainda resta o combate judicial.
Apesar de a propriedade do terreno ser legalmente da UNE depois que o presidente Itamar Franco a devolveu aos estudantes em 1994, a peleja jurídica merece toda atenção e mobilização social para que seja construído no local, além da sede da UNE e UBES, um centro cultural projetado por aquele que foi um dos mais perseguidos pelo regime ditatorial, o arquiteto e comunista Oscar Niemeyer. Ainda deve ser erguido um monumento em homenagem a Honestino Guimarães.
Nessa luta ainda se mantém ao lado dos estudantes as mesmas forças democráticas e combatentes que ontem e hoje se posicionam na linha de frente pela defesa do Brasil e atualmente defendem esse histórico ajuste de contas. Também as entidades estudantis irmãs de nosso continente enviam manifestos de apoio a essa luta que rompe fronteiras. A OCLAE fez questão de enviar parte de seu secretariado executivo ao local, e o seu presidente, o cubano Luis Arza Valdés, pronunciou publicamente que além de UNE e UBES ali também será a sede simbólica da OCLAE.
É como assinala um trecho do manifesto intitulado “UNE e UBES de volta para casa” que conta com importantes adesões como a do presidente Lula e vários artistas, intelectuais, políticos e ativistas de diversos movimentos: “Retornar a sede de tantas jornadas e lutas é rever a dívida histórica de toda a sociedade para com os estudantes brasileiros e um dos atos simbólicos para superar definitivamente um período tão duro para o povo deste país.”
Esse enredo que as elites tentaram apagar é agora cantado em versos e prosas nesse carnaval e certamente vai ganhar as avenidas e ruas de todo o país. Estamos de volta ao samba.
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[1] Trecho da música “De volta ao samba”, de Chico Buarque.