Sobre a dinâmica econômica chinesa. “Descolamento”?
Em entrevista coletiva concedida na quinta-feira última (16/04), o primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, ao comentar o crescimento chinês no primeiro trimestre, colocou que o desempenho chinês foi “melhor que as expectativas” (1).
Publicado 23/04/2009 17:22
Mas, o que nos interessa aqui no Brasil não é a discussão dos números em si, mas principalmente do processo que tais expressam. Além disso, algumas questões relativas ao possível “descolamento” chinês ante a crise devem – gradativamente – começar a serem respondidas.
Amiúde as expectativas nada otimistas no Brasil e no resto do mundo, com relação ao mesmo período do ano passado, neste primeiro trimestre o PIB chinês avançou 6,1%. Sua produção industrial cresceu (sempre com relação ao mesmo período do ano anterior) 5,1% cabendo destaque ao fato de somente em março o avanço da indústria foi de 8,5%. Esse crescimento é resposta (quase) imediata ao fato de os investimentos em ativos fixos terem crescido 28,8% neste trimestre.
Interessante notar ainda dois dados: a primeira, 29,4% dos investimentos foram dirigidos à agricultura, o que revela uma capacidade nada razoável de planejamento, pois cerca de 20 milhões de chineses que perderam o emprego nas cidades voltaram ao interior e em um momento em que é nítida a queda da produtividade do trabalho na agricultura chinesa. O segundo aspecto, relacionado ao comércio exterior, dá conta de as reservas cambiais chinesas terem voltado a subir após dois meses de queda (chegou a US$ 1,9 trilhão em março), refletindo, a retração da demanda internacional, o que pode espantar muita gente que ainda é capaz de reduzir um projeto nacional daquela magnitude a um “modelo exportador” (de badulaques sem o menor valor agregado, claro) baseado em “mão-de-obra barata” (ou escrava ou semi-escrava), ainda mais quando se enseja que a variável consumo esteja crescendo sua fatia na contribuição ao aumento acelerado do PIB chinês nos últimos anos.
De forma rápida: capitalismo, China e Brasil
A grande verdade por deras destes dados é que os chineses conhecem o funcionamento do capitalismo como ninguém. Talvez algo que seja fruto de um misto de capacidade de visão de conjunto, competência e altíssimo nível da governança comunista chinesa (quem dera nossos políticos tivessem um quarta da capacidade de seus análogos chineses) com o fato de os chineses terem uma experiência considerável de 3.000 anos na prática comercial/mercantil.
Esta conjunção de fatores conjunturais e históricos pode dar vazão ao fato de os chineses terem sido o primeiro país do mundo a anunciar um pacote de estímulos à economia da ordem de US$ 600 bilhões ainda no mês de novembro no ano passado, enquanto que nosso BC alienígena – naquele momento – ainda nem cogitava uma queda mais brusca nas taxas de juros por aqui.
Aumentando o parêntese de comparação com o Brasil, os chineses se comportam assim de forma ativa enquanto em nosso país o governo é colocado na defensiva por uma mídia de aluguel que cobra satisfações quanto por conta de um chamado aumento do “déficit” da previdência social (como se esse tio de operação não tivesse claro caráter de “investimento” dado os efeitos multiplicadores por toda a economia) da ordem de R$ 16 bilhões ou algo em torno de US$ 6,8 bilhões, o que representa um pouco mais de 1% do valor total do pacote de estímulo tocado adiante pelo governo chinês.
Duas condições objetivas ao “descolamento” chinês
A questão que não quer calar acerca de um possível ou provável desolamento chinês ante a crise internacional, mais uma vez deve vir à tona com o anúncio da performance chinesa neste primeiro trimestre. Como pontuei em recente artigo ao Vermelho (2), acredito que no médio e longo prazo a China deve sim, dada a magnitude de seu mercado interno aliada a uma superestrutura totalmente voltada à relação entre desenvolvimento e soberania nacional, demonstrar sinais de descolamento.
A verdade é que uma crise como esta leva, necessariamente, a uma maximização da Divisão Internacional do Trabalho, ao passo que o comércio internacional sofre retração, comércio este que funciona sob normas capitalistas. Mais, esta crise (além de abrir mais um ciclo de guerra comercial pela via do protecionismo) – também – deixa em evidência a própria crise de um determinado tipo de comércio baseado em formas anárquicas de produção e que tem, por exemplo, na política cambial praticada no Brasil uma grande expressão. Retornando, logo, a China como um “modelo” tipo NEP, onde o processo de acumulação é condicionado por um intenso e superavitário comércio exterior, fez-se sentir o “tranco” da crise. Nada fora do normal dada as tamanhas oportunidades que são abertas (internalização de tecnologia, financiamento e margem de manobra política) à abertura de negócios com o ocidente (capitalismo). Porém, tal atrelamento à dinâmica econômica global pode ser o fator-chave que explique a dificuldade, assumida pelo governo, de a China atingir a meta de 8% de crescimento para este ano. Superar este limite é a própria essência do processo de “descolamento” chinês.
Vejo eu que saída que ela encontra a tal citado limite obedece a duas ordens de fatores que devem ser analisadas sob um relevo de abstração muito mais amplo do que certos “papers” produzidos por alguns “economistas bonitinhos” e/ou opiniões de nossa mídia colonizada sobre a China: uma (já e sempre citada) extensão de seu mercado interno e outra, que se é extraída a partir de uma análise historicizada, relacionada com o fato de o capitalismo (imperialismo, Estados Unidos) conviver com seu sucessor histórico (socialismo, China): formas planificadas de comércio internacional. São dois fatores onde o peso da China (e conseqüentemente do socialismo) faz-se sentir de forma sensível e é onde se assentam as condições objetivas ao “descolamento” chinês.
Enfim, da mesma forma que as técnicas de planejamento podem levar um país a se fechar inteiramente (URSS pós-1930), elas podem municiar um país como a China (e o Brasil) a trabalhar na crise de forma que a própria crise seja um momento propício, tanto para alargar seu mercado interno quanto para partir para uma nova quadra de táticas mercantilistas/planificadas pelo exterior. Nada que a China não saiba fazer a pelo menos 2.000 anos…
Genericamente acerca do processo chinês
O histórico de crises anteriores nos demonstra que trata-se de uma época propícia aos países da periferia encetarem processos de substituições de exportações. Para alguns países com potenciais mercados internos, como a China e o Brasil, outra gama de oportunidades são abertas no sentido de barganhar com empresas do centro do sistema uma troca entre novas oportunidades de investimentos por um lado (às empresas) e transferência de tecnologia de outro. Assim a China brilhantemente o fez, por exemplo, com a Siemens alemã e a Alston francesa responsáveis pela transferência de tecnologia à consecução de uma indústria mecânica pesada capacitando o país à elaboração e construção de trens, locomotivas, geradores etc.
Aos chineses, este movimento de incremento de sua capacidade produtiva foi acompanhada por uma agressiva política comercial de formação de superávits comerciais que possibilitaram o país a manusear uma política monetária expansiva internamente (formação de um mercado interno a produtos manufaturados) do incentivo ao consumo pela via de juros baixos e facilitadores de uma política de crédito séria. Concomitante a isto liberou a iniciativa privada para competir, internamente, com empresas estatais em setores não/chave da economia (setor de serviços) em simultaneidade com a fusão (com outras empresas), privatização e simplesmente fechamento de cerca de 50.000 pequenas e médias empresas estatais. Nesta esteira de reestruturação produtiva e de alocação de cadeias produtivas incentivou-se, à moda dos zaibatzus japoneses e dos chaebols coreanos, a formação de poderosos conglomerados estatais nos setores estratégicos da economia, antecipando internamente assim a algo inerente às crises econômicas sintetizada em grandes fusões e aquisições. Entre outras funções, a estas empresas coube (e cabe) a tarefa de serem as pontas-de-lança dos interesses estatais chineses no exterior.
São estas empresas a dimensão concreta da economia como expressão de uma política baseada na formação, à moda dos conselhos de Lênin, de uma poderosa nação socialista pronta não somente à travar qualquer guerra militar contra seu território. Mais que isso: torna-se capaz de evitar qualquer tipo de intervenção militar na medida em que o destino e os interesses de muitos (quase todos) capitalistas no exterior estão cada vez mais atrelados ao destino da China.
Como a economia não funciona como uma máquina e sim como um corpo animal formado por milhões de células que se auto-influenciam num verdadeiro processo no sentido marxista do conceito, os chineses criaram condições nas últimas três décadas de se tornar uma potência financeira (imensas reservas cambiais), assentando assim a principal condição à planificação do comércio internacional, com instituições financeiras voltadas exclusivamente ao financiamento de exportação e de mecanismo de crédito externo com mobilidade de atrair dezenas de países à sua órbita gravitacional. Ao lado disso, com um mercado interno quase inelástico, é capaz de atender as ofertas destes mesmos países, tornando-se a China uma grande opção de comércio com relação ao imperialismo. Resumindo, a solução da questão nacional chinesa torna-se, de forma objetiva, condição de primeira ordem à solução da questão nacional às nações periféricas.
Abre-se, assim, um relevo de atuação política, onde o destino do capitalismo e do socialismo depende de quem é mais capaz no campo da economia. Lênin, profeticamente, nos deu a pista acerca deste processo de deslocamento da luta-de-classes – em âmbito mundial – no sentido da luta econômica e comercial entre os dois sistemas.
Concluindo
Falei, de forma genérica, por aqui acerca de duas condições objetivas ao processo de “descolamento” da economia chinesa que obedecem a dinâmicas internas e externas. Internamente os incentivos à produção e ao consumo dão sinais de justeza de rumo cujo crescimento chinês no primeiro trimestre deste ano expressa muito bem.
Externamente cito uma reportagem assinada pelo jornalista Assis Moreira ao jornal Valor Econômico (26/02/2009) intitulada “China vai às compras atrás de ativos baratos”, onde as palavras do Ministro do Comércio chinês, Chen Deming, ao visitar a Europa acompanhado por 200 executivos de empresas estatais chinesas (menos a França por questões envolvendo a recepção de Dalai Lama por Sarkozy), simplesmente expressou o seguinte: “desta vez viemos com os bolsos bem cheios e podemos ajudar a economia européia que está em desaceleração forte” (3).
Acho que não preciso dizer mais nada…
Notas:
(1) “Premier: China´s economy doing ‘better than expected’ thanks to stimulus”. People´s Daily. 17/04/2009. Disponível em: http://english.peopledaily.com.cn/90001/90776/6638765.html
(2) JABBOUR, E.: “A China e o diferencial da crise”. Vermelho. 20/02/2009. Disponível em: https://dev.vermelho.org.br/base.asp?texto=51355
(3) Para detalhes das operações financeiras fechadas durante esta visita, sugiro a leitura do citado artigo ao Vaolor Econômico através do link: https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2009/2/26/china-vai-as-compras-atras-de-ativos-baratos