Severino Cabral e o conhecimento brasileiro sobre a China

Além de um grande pensador e um professor exemplar, nosso amigo Severino Cabral tinha uma grande capacidade de transformar suas ideias em realidade, além de saber cultivar duradouras amizades.

No dia 10 de novembro de 2021, dentro das atividades do 4º Encontro Nacional da Rede Brasileira de Estudos da China (RBChina ), coordenei a mesa China na Geopolítica Global: Uma homenagem a Severino Cabral, composta pelos professores Henrique Altemani, (Universidade de Brasília), Giorgio Romano (Universidade Federal do ABC) e a professora Alana Oliveira (Universidade Federal do Rio de Janeiro)[i].

A seguir, compartilho, acrescentado de algumas notas, o texto por mim usado em memória do nosso homenageado:

Nessa fala em homenagem ao Professor Severino Cabral, permitam-me inicialmente compartilhar uma pequena história sobre o nosso primeiro encontro, salvo erro, no Rio de Janeiro, no ano 2000.

Naquela época, eu estava estudando chinês clássico e cultura chinesa tradicional. E os professores David Jye e Chen Tsung, do Departamento de Chinês da Universidade de São Paulo, convidaram-me para acompanhá-los em uma viagem ao Rio de Janeiro para visitar alguns brasileiros estudiosos de China, entre os quais o professor Severino Cabral.

Durante o almoço, os três professores conversaram bastante sobre assuntos diversos, como a necessidade de ampliação dos estudos de China no Brasil, o ensino da língua chinesa, desenvolvimento de pesquisas etc. E eu ali, apenas ouvia a conversa dos mestres.

Lembro-me que depois do almoço o professor Severino fez-me a seguinte pergunta: você sabe qual é a principal religião dessa China atual? Eu achava que sabia, mas por um misto de receio, confesso que nada respondi. E ainda bem, pois logo veio dele uma resposta para mim inesperada: “É o seu nacionalismo!”, disse-me, acrescentando em seguida importantes comentários sobre o tema.

Com o passar do tempo pude entender a profundidade daquela questão, pois sem a compreensão do nacionalismo chinês é praticamente impossível entender a trajetória vitoriosa do Partido Comunista da China, a implantação da República Popular em 1949 e os rumos do seu desenvolvimento atual.

Depois daquele primeiro encontro voltei a revê-lo mais uma ou duas vezes em São Paulo. Em 2007 mudei-me para China e depois de 2012, quando passei a morar em Pequim, nossos encontros passaram a ser mais constantes e, assim, através de uma interação intelectual mais ativa fomos consolidando a nossa amizade.  

Severino Cabral (à direito), na companhia de Inácio Carvalho, editor do Portal Vermelho, e Marcos Oliveira, editor do Monitor Mercantil, durante o Fórum de Comunicação do jornal Diário do Povo, em Dunhuang, China, em 2017

Natural de Vitória, no Espírito Santo, o professor Severino Bezerra Cabral Filho nasceu em 1944 e nos deixou no dia 20 de julho de 2021. Na Universidade Federal Fluminense (UFF) concluiu a sua graduação em História e na Universidade de São Paulo fez seu doutorado no curso de Sociologia. Sua tese resultou no livro Brasil Megaestado, Nova Ordem Mundial Multipolar, publicado em 2004[ii].

Diplomado também pela Escola Superior de Guerra (ESG), passou a integrar o seu quadro de membros permanente, atuando ali como professor de 2001 até os últimos dias de sua vida. Nessa condição, fez parte também do corpo docente do Programa de Pós Graduação em Estudos Estratégicos da UFF e por muitos anos ministrou cursos e proferiu palestras na Escola de Estado Maior da Aeronáutica e na Escola de Guerra Naval. 

Em relação aos estudos de China no Brasil, o professor Severino iniciou sua trajetória ainda muito jovem, com de textos de Mao Zedong. Seus estudos mais sistemáticos começaram em 1977, quando elaborou e ministrou no Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes (RJ) um curso denominado “Ásia Contemporânea I: China e Indochina”[iii].

Através desse Centro de Estudos, o professor Severino procurou também estreitar as relações com acadêmicos brasileiros e chineses, assim como também com o corpo diplomático da China e do Brasil. Foi assim, por exemplo, que o primeiro embaixador da República Popular da China no Brasil, Zhang Dequn, fez uma visita ao Rio de Janeiro, atendendo a um convite sugerido pelo professor Severino e formulado pelo professor Cândido Mendes. E foi nesses passos iniciais de construção de pontes com o corpo diplomático chinês que o professor Severino participou no dia 02 de outubro de 1979 da grande festa de inauguração do prédio da Embaixada da República Popular da China, em Brasília.

Em conversas recentes com o ex-embaixador da China no Brasil Chen Duqin, ele disse-me que durante a sua atuação como cônsul geral e embaixador do Brasil esteve várias vezes na Escola Superior de Guerra para ministrar palestras à convite do professor Severino, acrescentando que “o professor foi muito importante não só nessa conexão acadêmica, mas também na aproximação dos dois países”.

Nessa sua trajetória, o professor apresentou em 1993 à Universidade Cândido Mendes um Programa de Estudos da China e da Ásia Pacífico, do qual passou a ser o coordenador. E em m 1994, em um trabalho conjunto com o Departamento de Ásia Oriental do Itamaraty, organizou na Universidade Cândido Mendes um evento para comemorar os 20 anos do estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países. O referido evento contou com a presença dos embaixadores da China e do Brasil, além de diplomatas, empresários, acadêmicos e estudantes.

Em 2018, em visita à Escola Superior de Guerra

Foi também em 1994 que ele fez sua primeira visita à China, integrando uma missão acadêmica organizada pelo Itamaraty, visitando na oportunidade Cingapura, Pequim, Hong Kong e Macau. Em um relatório ao Itamaraty sobre a referida viagem, o professor escreveu as seguintes ponderações:

“De volta ao Brasil, pude começar a refletir sobre algumas ideias antigas e novas sobre a região asiática e o seu impacto sobre a ordem mundial nesta finimilenaridade […]. Outros fatos parecem sugerir que o centro dinâmico da vida econômica internacional  transferiu-se do Atlântico para o Pacífico […] O Brasil, que busca superar o seu papel na cena mundial, deve ter no adensamento de suas relações com a Ásia uma das dimensões dominantes de sua ação diplomática.” [iv]

No ano seguinte, 1995 ele retorna novamente à China, desta vez acompanhando a visita do então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso. E na intensificação desse processo de estudos e intercâmbios acadêmicos, passou a visitar a terra de Confúcio quase anualmente, estando aqui por cerca de 30 vezes.

Em um prefácio ao livro China: uma visão brasileira publicado em 2013 pelo Instituto Internacional de Macau, o ex-embaixador da China no Brasil Li Jinzhang fez as seguintes observações sobre o professor:

 “[…] Encontramo-nos várias vezes após a minha chegada ao Brasil e me inspirei imenso nas suas observações sensatas e perspicazes sobre a China e as relações sino-brasileiras. Passamos a ser amigos muito rapidamente. […] Tenho constatado várias qualidades preciosas de um estudioso excelente, tais como visão estratégica, pensamento independente, pragmático e empreendedor”[v]

Outro importante momento nessa sua intensa trajetória é o ano de 2004, quando ele cria o Instituto Brasileiro de Estudos de China Ásia-Pacifico (IBECAP), um instrumento institucional de interatividade acadêmica que lhe permitia mais autonomia para interação acadêmica e desenvolvimento de novos projetos.

Nessa nova etapa, destaca-se uma solida parceria estabelecida com o Instituto Internacional de Macau, com quem realizou 11 Seminários sobre “O Papel de Macau nas Relações Sino-Luso-Brasileiras”. Esses eventos acadêmicos ocorreram presencialmente em cidades como o Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Recife, Lisboa, Porto, Pequim e Macau, entre outras. Nessa parceria foram também coeditados cerca de oito livros.

O primeiro desses seminários ocorreu em 2009. Posteriormente, integrou-se também ao projeto o Centro de Estudos dos Países de Língua Portuguesa da Universidade de Economia e Negócios Internacionais, em Pequim, sob a liderança do Professor  Wang Cheng’an, ex-secretário-geral do Fórum de Macau.

Em Macau com o presidente e o vice do Instituto Internacional de Macau.

Em 2017, um desses encontros ocorreu aqui em Hangzhou, na Universidade de Estudos Internacionais de Zhejiang, instituição onde eu trabalho. Devido à crise epidêmica, o Seminário de 2019 foi o último dessa longa série[vi].

Vale salientar que na visão do professor Severino, Macau compartilha com todo o mundo lusófono um ativo simbólico, histórico e cultural comum e, por isso mesmo, se constitui como uma ponte essencial para o aprofundamento desse diálogo entre o Brasil e a China.

Aliás, ao saber dessa homenagem preparada pelos organizadores do IV Encontro da RBChina, seus amigos Dr. Jorge Rangel e o Dr. José Lobo do Amaral, presidente e vice-presidente do Instituto Internacional de Macau, pediram-me para transmitir a seguinte mensagem: “O Instituto Internacional de Macau se associa a esta justa homenagem ao Professor Dr. Severino Cabral, prestigiado acadêmico e nosso parceiro em muitos projetos e um dos mais lúcidos pensadores dos valores da grande Comunidade de Língua Portuguesa e da importância de Macau na cooperação da China com os Países Lusófonos”.

Para concluir essa nossa homenagem, quero saudar os familiares do professor Severino, nomeadamente sua esposa Valéria, seu filho Daniel, sua filha Alexandra, seus netos e netas Omar, Daniela, Maria Alice, Beatriz e Tito Aruã (acrescentando que também que Daniele e o Danilo, filhos da sua esposa Valéria eram considerados pelo professor como sendo também seus filhos), demais parentes, amigos e amigas.

Acrescentaria ainda que, além de um grande pensador e um professor exemplar, nosso amigo Severino Cabral tinha uma grande capacidade de transformar suas ideias em realidade, além de saber cultivar duradouras amizades. Apesar da saudade, nos alegra saber que o essencial do seu legado para a construção de um conhecimento brasileiro sobre a China certamente continuará a ser enriquecido pelas gerações vindouras.

Obrigado professor Severino Cabral.

Notas


[i] As apresentações estão disponibilizadas no seguinte endereço:

www.youtube.com/watch?v=jbsbG9YxQ48 (Acessado em 11/11/2021)

[ii] Livro publicado pela editora Contraponto, com o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Seu orientador,  o professor Fernando Augusto de Albuquerque Mourão, era um destacado estudioso da África no Brasil e deixou memoráveis contribuições a esse campo de estudo e à formação de diversos intelectuais brasileiros na área de relações internacionais.

[iii] Nas palavras do professor: “… em 1977 […] eu fui convidado para trabalhar no Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes. Eu tinha um amigo […], o professor José Maria Nunes Pereira, que disse-me: ‘eu trabalho aqui com África e não tem nada sobre Ásia, mas você que vive aí estudando esse famoso Mao Zedong deve fazer alguma coisa sobre a China, {então} vai fazer a China” […] Quando você é jovem não teme nada, não teme sobretudo a sua ignorância. {então} Topei, [e] fiz um programa abordando a evolução da China desde a Guerra do Ópio até a Guerra do Vietnã. […] E as leituras (do Curso), além de alguns historiadores ocidentais, eu botava logo Mao Zedong…”  In. Depoimento concedida no dia  22 de outubro de 2012 ao Projeto de História Oral do IBGE

www.youtube.com/watch?v=zlkniy52S8g&t=0s/ minutos: 59:30 (Acessados em 8 de novembro de 2021)

[iv] Cabral, Severino. China: uma visão brasileira. Macau, IIM/IBECAP, 2013, p. 129-130.

[v] Cabral, Severino. China: uma visão brasileira. Macau, IIM/IBECAP, 2013, p. 11.

[vi] Também em dezembro de 2015 o professor nos visitou em Hangzhou onde ficou conosco quatro dias. Na oportunidade visitou a Universidade de Estudos Internacionais de Zhejiang onde deu uma palestra para meus alunos chineses sobre o tema da Lusofonia.

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