Recém Nascida: a invisibilidade de Angélica e Macabéa
Um mergulho profundo na essência feminina através das histórias de Angélica e Macabéa, onde a simplicidade revela a complexidade das vidas silenciadas.
Publicado 30/01/2024 10:36
O conto Recém Nascida, no original Recién nacida, de Teresa Porzecanski, integra a coletânea: As diferentes moradas das palavras: contos de escritoras em tradução. É uma publicação recente da Editora da Universidade Federal do Paraná, cuja organizadora é a professora Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra, que resulta em um trabalho extenso e dedicado com tradutores experimentados e alunas/os do curso de Letras da UFPR, que após a escolha dos contos, foram durante o período do curso na disciplina de Crítica e Prática da Tradução III, no primeiro semestre de 2018, lidos, refletidos, vividos em sala de aula. A professora Nylcéa integra o Núcleo de Estudos de Gênero da UFPR, vinculado ao Setor de Ciências Humanas. No período as/os participantes buscaram os textos, realizaram a negociação com as autoras para permissão da publicação em português e procederam com a tradução dos textos e finalmente atuaram na preparação para divulgação da coletânea. São oito contos de autoras de diversos países: Sibéria, Inglaterra, Alemanha, Quênia, Estados Unidos, Áustria e Uruguai. O livro apresenta a versão original e a tradução em português.
Os oito contos escolhidos, sob orientação da professora, expressam, no dizer de Clarice Lispector, o desafio ao “mundo que não está à tona”, se tornando um ato de criação e coragem, uma conquista da presença das mulheres quase sempre apagadas historicamente em seus esforços de sobrevivência. Como sublinhava Michele Perrot em seu livro “As mulheres e os silêncios da história”, o silêncio e a invisibilização foram reiterados através dos tempos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento: “aceitar, conformar-se, obedecer, submeter-se e calar-se, esse mesmo silêncio, imposto pela ordem simbólica, não é somente o calar da fala, mas também o da expressão, gestual ou escriturária”. Na coletânea, e particularmente no conto aqui escolhido, a escrita sobre Angélica, a personagem descrita por Teresa, é singela, simples, e poderia se dizer de uma beleza ingênua, se assemelhando à Macabéa de “A Hora da Estrela”, de Lispector, resenhado e publicado no Portal Vermelho. Há semelhanças advindas da inocência de ambas, da modesta origem social, de suas ausências no cotidiano, de seu apagamento como mulheres, da falta de identidade, da solidão e de uma esperança vaga pela vida, com pouca ou nenhuma relação familiar, o que as tornam pessoas abandonadas.
A escritora Teresa Porzecanski, uruguaia, professora da Universidade Nacional do Uruguai, é crítica cultural e já publicou diversos livros de contos e numerosos ensaios, com diversas obras traduzidas para o inglês, francês, alemão e holandês. Seus trabalhos de ficção abrangem temas que vão desde o feminino e religioso até as vivências e tradições das comunidades judaicas assentadas no Uruguai, as minorias afrodescendentes, a religiosidade popular, os sistemas de crenças não tradicionais, o corpo e suas implicações na identidade, a etiologia do preconceito social e individual, tudo visto desde uma perspectiva antropológica. Para o português, só traduzidos o conto: “O mal é uma qualidade do próprio Deus” e “Recém nascida”, que participa dessa coletânea da Editora da UFPR, traduzida por Fernanda Cristina Lopes.
Como Macabéa, que tinha por passatempo ouvir a “Radio Relógio”, a Angélica de Porzecanski, ao realizar seus serviços como doméstica, também ouvia o rádio e sua telenovela, que sempre terminava com propaganda de sabonete, momento em que ela também encerrava a limpeza da janela, traduzindo uma existência insignificante e quase miserável.
Também Angélica, ao realizar seu oficio todos os dias, numa repetição, uma rotina enfadonha, o fazia na solidão e silêncio daqueles cômodos. Ao lembrar de sua infância semiesquecida, também recordava que mesmo seu nome e história lhes eram estranhos, tal qual Macabéa que, largada como trapo, sobrevivia num quarto pobre de pensão, ainda que mantendo inocente sonho de um dia ser feliz. Assim, Clarice Lispector e Teresa Porzecanski se entreolham, se identificam em Macabéa e Angélica, guardam entre si aproximações e sentimentos presentes no cotidiano de vida de milhões de mulheres.
Angélica ao se perceber como pessoa e não coisa, após o falecimento de sua patroa, a quem cuidara durante anos, se apropriou de forma mais consciente dos objetos constantes na casa, busca a liberdade nem que seja naquele momento e sua liberdade é a sua morte. Macabéa, também em um momento de emoção depois da informação da cartomante, vislumbra talvez pela primeira vez um futuro e se permite ter esperança, não percebe o carro e é atropelada. Ambas, renascem, Macabéa na “Hora da Estrela” e Angélica na “Recém Nascida”, embora em outros mundos.
Referência:
PEDRA, Nylcéa Thereza de Siqueira. As diferentes moradas das palavras: contos de escritoras em tradução. Editora da UFPR. 143 pp.https://www.editora.ufpr.br/
PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: Edusc, 2005.