Projeto político da população negra (2)


Esse artigo dá continuidade ao anterior “Princípios norteadores para elaboração do Projeto Político da População Negra para o Brasil”, cujo objetivo foi de iniciar de forma sistemática o debate do projeto político da população negra para o Brasil, tem

Na ocasião foram expostos cinco princípios (democracia, universalidade, equidade, anti-racismo e hegemonia) e duas preocupações essenciais que darão viabilidade ao projeto se incorporadas (factibilidade e interatividade). Pretendo dar mais um passo na reflexão desse tema, levando em conta que para formulação do projeto prioritariamente será necessário uma análise da conjuntura nacional e internacional, das lutas e experiências dos povos discriminados racialmente, das lutas do movimento negro brasileiro na sua globalidade (gênero, geracional, quilombolas, religiosos, etc.). Sem um bom diagnóstico será difícil elaborar um projeto que corresponda aos anseios e necessidades da população negra e pobre. Embora saibamos que as análises de conjunturas são quase sempre carregadas de vícios políticos e ideológicos, para o Conneb devemos recorrer aos números, as práticas políticas, as correlações de forças da maneira mais precisa possível para entendermos o Brasil e o mundo. Esse desafio está posto para a primeira Assembléia Nacional marcada para os dias 11, 12, 13 e 14 de outubro de 2007, em São Paulo.


 


O Movimento Negro Brasileiro está diante do sério desafio de construir um projeto político para o país que atenda seu povo (excluo do conceito de povo a elite branca, racista, segregacionista que nos obriga a reagir ao ódio, a pobreza, a morte violenta que vitimiza a população negra e pobre). Esse projeto terá que encontrar a medida correta para articular três dimensões da problemática social produzida pelo sistema capitalista racista para garantir sua sobrevivência: a estrutural que está relacionada ao sistema econômico e a divisão das riquezas socialmente produzidas; a conjuntural corresponde as movimentações das forças políticas dominantes e não dominantes e a possibilidade de mexer corretamente o tabuleiro da luta de classes; e a das necessidades materiais imediatas que garantem a sobrevivência com dignidade. A articulação dessas três dimensões contribuirá para que construamos unidade em torno do projeto, visto que a percepção, impacto e a reação ao racismo são variadas e origina múltiplas razões e formas de lutas. Os motivos para a população negra chamar um congresso e elaborar um projeto político são vários, porém tem uma causa específica geradora de necessidades com a qual a população negra e branca não pode transigir, sob pena de não garantir a existência física com dignidade de parcela importante do povo brasileiro: o racismo e suas conseqüências na vida cotidiana de negros e negras. 


 


Sob a égide do racismo a elite branca brasileira no início do século XIX ciente da eminência da independência do Brasil e ciente que se aproximava a ruína do sistema escravista, começa a pensar um projeto de nação. Duas preocupações transversalizaram toda reflexão dos então donos do Brasil, a primeira era como manter a unidade territorial quando as elites regionais não se identificavam com um projeto centralizado de poder e não existia um sentimento de brasilidade consolidado, viam o exemplo da América Espanhola que se dividiu em vários países para atender interesses corporativos de elites econômicas locais. A segunda era o que fazer com os escravos e com os negros, visto que era maioria populacional, nutriam grande ressentimento da terra em que foram colocados no cativo e da elite branca em razão dos sofrimentos e humilhações imputadas no tráfico transatlântico e na escravidão. O trauma da Revolução Haitiana resistia fortemente no imaginário das classes dominantes dos países escravocratas; a revolução industrial batia às portas da Inglaterra e o abolicionismo se radicalizava nesse país, pois logo os ingleses compreenderam que não há possibilidade de coexistência entre o escravismo e capitalismo.


 


Inegavelmente a elite brasileira foi bem sucedida em traçar um projeto nacional no qual manteve integralmente a dominação e respondeu em adequação aos seus interesses e as suas principais inquietações. Nenhuma elite dominou tão bem seu povo. O Brasil manteve a integralidade territorial sufocando todos os movimentos políticos, pacíficos ou não, com objetivos separatistas, cooptando lideranças regionais, assimilando o “federalismo” através da articulação do poder central com os poderes regionais – esses expressos nos mesquinhos interesses dos coronéis e caudilhos espalhados em todo território nacional. A questão dos escravos e dos negros teve um tratamento mais prolongado, pois estava em jogo o poder político do país. Em concomitância a um processo gradual e controlado de abolição da escravidão, estabeleceu-se as bases que permitiram a manutenção do poder nas mãos da  minúscula elite branca em detrimento do povo.


 


Nesse caminho o Estado brasileiro como protagonista e em consonância aos interesses da elite dominante – anacronicamente – optou pelo latifúndio quando sancionou a Lei da Terra em 1850, enquanto os países europeus e os EUA realizavam suas reformas agrárias, no Brasil se assim procedesse a reforma agrária entregaria terras aos negros, pois esses constituíam quase 86% da população brasileira. Assegurada a posse da terra, iniciaram um processo radical de branqueamento da população brasileira, através da desafricanização do Brasil degredando para África africanos e negros livres suspeitos ou acusados de praticarem algum crime; proibindo imigração de africanos ao Brasil; incentivando a miscigenação; promovendo imigração em massa de europeus; usando negros e escravos em conflitos internos e guerras; utilizando violência física através do aparelho repressor do Estado contra a população negra. Na época havia estudos que gozavam de grande credibilidade indicando que em aproximadamente cem anos o “sangue negro” seria diluído no Brasil.


 


O resultado dessa escolha é que o Brasil padece com graves problemas sociais, pois sustenta profundas desigualdades entre os ricos e os pobres, entre os negros e os brancos, entre o norte e o sul; convive com violências que superam números de países em conflitos; excessivo patrimonialismo no exercício da função pública, uma das raízes da corrupção endêmica que assola os cofres públicos e limita sua capacidade de atender o povo necessitado; convive com um racismo hipócrita, pois ao mesmo tempo em que o Estado assume sua existência através de estudos e documentos oficiais, nega intervir verdadeiramente sobre ele, assim também age grande parcela da sociedade civil, assume a existência do racismo, mas não encontramos nela os racistas.  A elite racista foi derrotada em seu projeto de branqueamento, mas continua matando. Os aparelhos genocídas não silenciaram, os negros continuam sendo as maiores vítimas de chacinas; assassinados pelo revólver do Estado e da violência urbana, especialmente nas periferias dos grandes centros; as crianças negras são as que mais morrem antes de completar um ano de idade; as jovens negras são as maiores vítimas de mortalidade materna; em razão da pobreza e da desinformação cresce a proporcionalidade de mulheres negras com Aids; mais mortes por doenças curáveis abatem a população negra e pobre. Podemos concluir que o Estado não abriu mão da política genocídas, ainda perseguem negros, embora não os encontrem amotinados no meio do mato, hoje a maioria dos negros estão nas áreas urbanas e se amotinam nas favelas, invasões, palafitas, cortiços. Daí a imperiosa necessidade da população negra se organizar em congresso e elaborar um projeto político que rompa com esse Estado.     


      


Esse projeto deve ter capacidade de elencar todas as propostas que encontrem eco na população discriminada. Tudo deve ser dito, até o óbvio, desde que sejam anseios captados das vozes ou sussurros do povo. As políticas defendidas pelo movimento negro devem levar em conta as desvantagens de gênero e geracional, por isso o princípio da equidade será sempre lembrado. Devemos trabalhar com objetivo de integrar para mudar, nas margens, sem a mínima presença nos espaços sociais e políticos não há possibilidade de intervenção efetiva. Por isso para o projeto obter resultados práticos capazes de interferir positivamente na vida das pessoas, deve estabelecer prioridades realizáveis, focar em eixos estratégicos estruturantes de fácil comunicabilidade, palpável, que se enxerga a “olho nu”, ao mesmo tempo tenha capacidade de interferir a curto, médio e longo prazo na estrutura social constituída. Educação, trabalho e participação política devem compor as prioridades do projeto político do povo negro. São eixos estruturantes, pois tanto promovem socialmente quando oferecidos, como podem ser ocasionadores de inúmeras desvantagens sociais (podemos denominá-las eixos derivados: saúde, moradia, pobreza, acesso a justiça, etc.) quando faltam. Além de agregarem elementos transformadores, dialogarem com a conjuntura e com as demandas imediatas, ou seja, salvaguardam presença nas três dimensões referidas.


 


Esses eixos foram observados pelos senhores de engenhos e pelo recém-nascido Estado brasileiro quando formularam o primeiro projeto nacional sem tutela de Portugal e voltado aos interesses da classe dominante no Brasil. As desigualdades e as desvantagens do negro foram previamente pensadas quando o Estado impediu o escravo e o negro liberto estudar, o atraso brasileiro é mais gritante, pois somente após a chegada da Família Real no Brasil, em 1808, instituíram a primeira faculdade no Brasil, hoje o sucateamento do sistema educacional público, especialmente no nível fundamental e médio, contribui para concentração e manutenção do poder nas mãos da burguesia racista brasileira. Substituíram a mão de obra nacional pela estrangeira, além de tirar as condições dos negros de trabalhar na terra, sem emprego e sem oportunidade para empreender sobrou para os negros brasileiros o subemprego, desemprego, criminalidade, humilhação e pobreza. Instituíram o voto censitário, apenas aqueles que tinham renda equivalente a 100 mil réis gozavam desse direito, universalizam o voto na constituição de 1988, permitindo que a massa de analfabetos (de maioria negra) vote, essa massa destituída da cultura política ignora que sua ausência do processo político contribui com sua marginalidade, parcela importante dos negros brasileiros continuam analfabetos políticos. A ausência desses três elementos estruturantes à promoção social – educação, trabalho e participação política – resultou em profundas desigualdades sociais, econômicas, educacionais, políticas, territoriais, desigualdades no acesso a saúde, segurança, justiça, cultura, lazer entre negros e brancos. Nossa perspectiva de inclusão deve prevê  mais escola, mais trabalho e mais participação política para população negra a bandeira principal do Conneb.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor