“Pragmatismo”, veneno insidioso na luta de classes – parte II
Na primeira parte do nosso estudo sobre o Pragmatismo – filosofia surgida no final do século XIX, nos Estados Unidos –, examinamos o seu caráter “empírico”, que repete a surrada tese “agnóstica de que nada podemos saber acerca da existência ou não da realidade objetiva e que o único que podemos conhecer são nossas próprias sensações e percepções, oriundas da experiência.
Publicado 18/01/2016 20:34
Postura que leva o pragmatismo a considerar as abstrações, os conceitos, as teorias como criações “metafísicas” da mente, que não tem correspondência com o real. A partir dessa visão “idealista subjetiva”, o pragmatismo assume um “anti-racionalismo militante” e afirma que a única forma de aferir a “veracidade” de uma “crença” (ao que se reduz o conhecimento) são os resultados práticos obtidos com a sua aplicação. Ou seja, se ela levar ao sucesso, for “útil”, trouxer “proveito” e “vantagens”, será verdadeira! Só o que é eficaz é verdadeiro. Portanto, se um indivíduo ficar desempregado, não tiver êxito em suas atividades ou fracassar em seu empreendimento, não deve buscar a causa disso na lógica excludente e concorrencial do capitalismo, e sim isso em suas “crenças errôneas”. Isto é, a culpa será sua…
Nesta segunda parte de nosso estudo sobre o pragmatismo, examinaremos suas concepções morais, jurídicas, sociais e políticas.
A "moral" pragmática
Como não podia deixar de ser, a concepção pragmática de “moral” segue a mesma visão “empírica” de sua concepção de conhecimento e de “verdade”. Para os pragmáticos não existem normas ou valores morais – “invenção dos metafísicos”, segundo eles –, e só o método experimental permitirá solucionar os problemas que venham a surgir, tendo como única referência a compreensão de que o “bom” ou o “certo” é aquilo que é “proveitoso” para o indivíduo e lhe assegura o êxito:
“No terreno da moral esse método conduz inevitavelmente ao relativismo ético. O instrumentalismo, por sua própria essência, rechaça todo gênero de normas morais obrigatórias para todos (…); os princípios morais são para ele simples instrumentos, da mesma forma que todos os conceitos em geral. Desde o ponto de vista do instrumentalismo, a moralidade de um ato deve ser avaliada somente segundo o êxito com que resolva cada ‘situação problemática’ moral por separado, isto é, em essência, de maneira totalmente subjetiva. (…) Em sua aplicação às relações políticas, o princípio do instrumentalismo pode ser facilmente utilizado para justificar o aventureirismo mais desenfreado, a arbitrariedade e qualquer ação violenta na hora de resolver os problemas políticos.” (YOVCHUK, M.T., OIZERMAN, T.I. e SHCHIPANOV, I.Ia. Compendio de Historia de La Filosofia, vol. 2. Montevideo: Ediciones Pueblos Unidos, 1969, pp. 747-748)
John Dewey expressou sem meias palavras essa concepção pragmática e utilitária da “moral”: “Os fins e bens morais existem somente quando se tiver de fazer alguma coisa (…) a moral não é catálogo de atos, nem um conjunto de regras a serem aplicadas (…) cada situação moral é situação isolada, inigualável, com o seu mérito ou bem insubstituível. (…) A felicidade é encontrada unicamente no êxito. (…) O crescimento, o desenvolvimento em si mesmo é o único ‘fim’ moral.” (DEWEY, John. A filosofia em Reconstrução São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, pp. 164-179).
Analisando esse “relativismo moral” do pragmatismo, o filósofo marxista mexicano Adolfo Sanchez Vazques constata:
“No terreno da ética dizer que algo é “bom” equivale a dizer que conduz eficazmente à obtenção de um fim, que leva ao êxito. Por conseguinte, os valores, princípios e normas são esvaziados de um conteúdo objetivo e o valor do “bom” – considerado como aquilo que ajuda o indivíduo na sua atividade prática – varia de acordo com cada situação. Reduzindo o comportamento moral aos atos que levam ao êxito pessoal, o pragmatismo se transforma numa variante utilitarista marcada pelo egoísmo; por sua vez, rejeitando a existência de valores ou normas objetivas, se apresenta como mais uma versão do subjetivismo e do irracionalismo.” (VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 254)
E mesmo uma estudiosa simpática ao pragmatismo – como a cientista política brasileira Thamy Pogrebinschi – tem que reconhecer que, ao contrário do utilitarismo de John Stuart Mill, o pragmatismo é puramente “individualista”:
“Ressalte-se (…) que a idéia de ‘felicidade geral’ ou ‘o maior bem para o maior número’ [de Stuart Mill] não são em si apropriadas pelo pragmatismo. (…) a utilidade não é por ele definida em termos de felicidade e tampouco de felicidade do maior número. O que é útil para o pragmatismo é simplesmente aquilo que é melhor para cada pessoa. A utilidade é definida, portanto, em termos instrumentais. (…) são úteis na medida em que conduzem eficazmente à realização dos fins dos indivíduos.” (POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo – Teoria Social e Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005, p. 67)
E John Shook, apologista do pragmatismo, confessa: “O pragmatismo é um individualismo, pois os fins são sempre fins de um determinado indivíduo. (…) Os valores não existem antes do nosso ato de valoração (…) Não nos perguntamos se nossas ações estão de acordo com ideais morais, quando obtemos um bem social (…) Os ideais morais são valorados por uma sociedade porque serviram no passado para resolver um conflito; eles podem ser (…) substituídos por outros ideais, caso venham a falhar na resolução de conflitos futuros.” (SHOOK, John. Os pioneiros do pragmatismo americano. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2002, pp. 149; 162-167)
Assim, a “moral pragmática” reduz todos os valores morais – amizade, solidariedade, lealdade, sinceridade, altruísmo, compaixão, espírito de justiça, coragem, entre outros – à mera “utilidade” para o indivíduo, examinada em cada caso concreto.
O marxismo rejeita esse “amoralismo” pragmático. Os valores morais não são “eternos”, mas “históricos” e em uma sociedade de classes, assumem um pronunciado caráter de classe. Isso não significa, porém, que não existam valores universais, sedimentados ao longo do processo de evolução da humanidade:
“a aristocracia feudal, a burguesia e o proletariado possuem cada uma a sua moral particular (…) Essas três teorias morais representam (…) etapas distintas de um mesmo processo histórico e por isso têm um fundo histórico comum, o que faz com que forçosamente elas contenham toda uma série de elementos comuns. E não é só. Em fases idênticas ou aproximadamente equivalentes de desenvolvimento econômico, as teorias morais devem necessariamente coincidir, numa extensão maior ou menor. (…) também o mundo moral tem os seus princípios permanentes, que se colocam acima da história e das diferenças existentes entre os povos. (…) Que essa evolução se processa sempre, em largos traços, da mesma forma no campo da moral como nos demais ramos do conhecimento humano e sempre em um sentido de progresso, é o que nos parece indubitável.” (ENGELS, F. Anti-Düring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp.78-79)
Sem dúvida, o “amoralismo pragmático” serve como uma “benção” para a grande burguesia monopolista, que não tem quaisquer escrúpulos nem se detém diante do uso de qualquer expediente para acumular o capital e dominar povos:
“Na verdade, se o valor principal que a moral sustenta é o dinheiro e a riqueza, se a sua obtenção é considerada como resultado do pragmatismo da pessoa, como será possível pensar na moralidade dos meios para atingir este objetivo? (…) A moral burguesa é pela sua própria natureza hipócrita e dúplice. ‘O dinheiro não cheira’, esta é a divisa mais característica que põe a nu toda a sua falsidade interna.” (TITARÉNKO, A. I. Particularidades principais do desenvolvimento histórico da moral. In; DIVERSOS. Fundamentos da Ética Marxista-Leninista. Moscou: Ed. Progresso, 1982, p. 73)
“Para atingir um objetivo, desrespeita-se o caráter moral dos meios. Deste enfoque surge o princípio da conduta moral ótima que indica o critério de eficácia dos meios em detrimento do critério da sua moralidade. A mentira e a traição, o veneno e a espada – tudo é permissível e, mesmo, desejável quando se trata do caminho mais breve para o objetivo desejado.” (BAKCHTANÓVSKI, V. I. Problemas da opção moral. In: DIVERSOS. Idem, p. 138)
“As vantagens justificam os meios"
Todos conhecem a cantilena dos ideólogos burgueses de que os marxistas se orientariam pela tese de que “os fins justificam os meios”, no sentido de que os comunistas estariam dispostos a utilizar qualquer meio para atingir os seus fins – o socialismo e o comunismo. Essa é mais uma das tantas calúnias contra aqueles que lutam por um mundo mais livre e mais humano, liberto de toda forma de exploração e opressão – o que é incompatível com o uso do engano, a falsidade, a deslealdade, a baixeza e a vilania – que tão bem caracterizam o comportamento da burguesia em sua fase monopolista. O que a história tem demonstrado é que é o imperialismo quem – com o “suporte filosófico” do pragmatismo – nunca titubeou em utilizar os meios mais ignóbeis para alcançar os seus objetivos, obter “proveito” e “vantagens”, massacrar povos e destruir nações.
Ao adotar as fórmulas “tudo que é útil é verdadeiro”, “a idéia verdadeira é aquela que nos traz vantagens”, “o êxito é o único objetivo moral”, o pragmatismo concedeu respeitabilidade e cidadania a qualquer canalhice, desde que demonstre ser capaz de conduzir ao êxito. A cantilena dos escribas do imperialismo se voltou contra eles próprios, recauchutada sob a fórmula “as vantagens justificam os meios”!
Assim, se for preciso mentir – dizendo que o Iraque era detentor de “armas de destruição em massa” (mesmo sabendo que isso não tinha qualquer fundamento) –, invadir e destruir o país para apropriar-se de seus riquíssimos campos de petróleo, tudo isso é “moral”, é “certo”, pois obteve êxito e alcançou vantagens incalculáveis para o grande capital estadunidense, além de dividendos geopolíticos e militares para o imperialismo norte-americano!
O pragmatismo jurídico
A filosofia pragmática – com a sua pregação de que a “verdade” é o que é útil e não pode ser entendida como uma “representação objetiva” da realidade, devendo restringir-se a descrever cada experiência concreta, tendo como único critério de veracidade o seu proveito para o indivíduo – tornou-se a base ideológica das teorias mais reacionárias entre os juristas burgueses dos Estados Unidos, entre os quais os da escola “sociológica” e os chamados “realistas”.
Para os “sociologistas” – em perfeita consonância com o pensamento pragmático – não existem “princípios jurídicos” (invenção dos metafísicos…) e as normas e as leis tem um valor meramente formal, pois são incapazes de responder às necessidades das “experiências” práticas com suas singularidades. “O Direito é mais do que um conjunto de normas”, dizem. O que importa é o processo de aplicação dessas normas a cada caso concreto, atribuindo essa “experimentação aos juízes e aos tribunais:
“O abandono da democracia e o retorno à reação que caracteriza a época do imperialismo, manifesta-se particularmente no crescimento do papel dos tribunais e dos órgãos administrativos. Buscando fundamentar a arbitrariedade dos juízes e de quantos aplicam o Direito, os juristas reacionários norte-americanos sustentam que o essencial no Direito não é o elemento normativo [as leis], mas o processo da sua aplicação. (…) é precisamente a expressão do desejo da burguesia de desembaraçar-se de sua própria legalidade (…) a burguesia põe suas esperanças não tanto em suas leis, quanto em seus juízes, que devem ‘emendar’ as leis e adaptá-las no maior grau possível aos interesses dos círculos reacionários da burguesia imperialista (…) a ampliação do papel do tribunal e o estabelecimento da arbitrariedade dos juízes constitui uma das tarefas a que se propõe a burguesia.” (POKROVSKI e outros. História das Idéias Políticas. Ciudad de México: Grijalbo, 1966, pp. 595-597)
Os “realistas” vão ainda mais longe em sua “pragmatização” do Direito e na renúncia aberta à legalidade quando afirmam que a lei nada mais é que uma opinião do legislador, mas que essa opinião ainda não é um verdadeiro direito, senão simplesmente uma hipótese que deve ser avaliada pelos tribunais:
“O ‘realista’ Bingham (…) diz que não são as leis que governam, mas os homens. O direito não radica em regras, nem em princípios. Em sua aspiração de fundamentar a legitimidade da sentença dos juízes, afirma que estes não estão obrigados pelas leis, nem sequer pelos precedentes judiciais [a jurisprudência]. (…) A lei, com essa concepção, perde o valor de uma norma inamovível obrigatória para o juiz. (…) a lei é só um prenúncio do que na realidade faz o tribunal e nada mais. (…) John Dewey (…) afirma que a norma do direito deve ser valorada por suas conseqüências, por sua utilidade prática, como meio, como instrumento para alcançar determinados objetivos. (…) ‘Sem a aplicação diz Dewey – a lei é um pedaço de papel ou um som no ar, mas não há nada que se possa denominar lei.” (POKROVSKI, idem, pp. 597-599)
Não é preciso pensar muito para perceber as graves conseqüências que decorrem dessa “teoria pragmática do direito” da época do imperialismo (que significa a reação em toda linha), enquanto um instrumento para anular – na prática da aplicação do Direito – os limitados avanços duramente conquistados pelos trabalhadores e pelos povos de todo mundo no terreno dos direitos civis, políticos e sociais.
Infelizmente, muitas dessas idéias prevalecem inclusive em nossos tribunais, como recentemente vimos acontecer com a adoção pelo STF da “teoria do domínio do fato”, fazendo tabula rasa da “presunção de inocência”, existente em qualquer Estado de Direito que se preze.
O pragmatismo social e político
Ao expressar suas concepções de “Sociedade”, “Estado”, “Democracia”, o pragmatismo assume abertamente a apologia do capitalismo e da democracia liberal norte-americana, ainda que para isso tenha de lançar mão de afirmações teleológicas ou propor conceitos metafísicos – universais, imutáveis e a-históricos –, como “natureza humana”, “tendências inatas”, “propriedade privada”, “democracia”, jogando no lixo quaisquer exigências de “comprovação experimental” do que apregoam:
“James (…) tenta explicar o comportamento do homem e sua ‘experiência’ tomando por base a imutável ‘natureza do homem’ determinada, diz, pela ‘abundância inata de formas interiores, ou seja, pelo conjunto de instintos que condicionam o ‘interesse eletivo’ do psiquismo humano. Trata-se antes de mais nada do ‘instinto de propriedade’, que motiva o homem a apropriar-se, acumular, a fazer o mal a quem possui coisas das quais gostaríamos de nos apoderar; o ‘instinto de beligerância’, que torna fatais as guerras e morticínios; o ‘instinto de dissimulação’, etc.
James expôs francamente o sentido dessa concepção em suas ‘Palestras com professores sobre psicologia’. ‘O instinto da propriedade é inerente à nossa natureza – diz ele – e se arraigou tão a fundo nela que, do ponto de vista psicológico, parece que tempos que suspeitar antecipadamente de todas as formas extremadas das utopias comunistas (…) Ao que parece, para a prosperidade espiritual do homem é absolutamente necessário que ele seja dono, com direito de propriedade exclusiva, não só da roupa que veste mas de algo mais que ele possa, em caso de necessidade, defender de todo mundo.” (BOGOMOLOV, A. S. A Filosofia Americana no Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, pp. 48-49)
Seguindo a mesma toada, Dewey afirma que as guerras e as mazelas sociais decorrem dos “instintos humanos”:
“A semelhança da escravidão grega ou da servidão feudal, a guerra e o regime econômico vigente são formas sociais (patterns) entrelaçadas no material da atividade instintiva. A natureza inata do homem fornece a matéria prima, mas o costume fornece o mecanismo e os fins. A guerra seria inconcebível sem a ira, a disposição de luta, a concorrência, a vontade de exibir-se e outras tendências hostis. A atividade se assenta nelas e existirá em quaisquer condições de vida. Imaginar que elas serão erradicadas é o mesmo que supor que a sociedade pode viver sem alimentação ou sem a união do homem com a mulher. (…) semelhantes considerações dificilmente demonstram que a guerra deve ser erradicada em algum futuro distante” (DEWEY, John. Human Nature and Freedom. In: BOGOMOLOV…, idem, pp. 82-83)
Dewey, também, apresenta de forma apologética a “democracia liberal” norte-americana – “plutocracia” escancarada que concede ao povo unicamente o direito de escolher a cada quatro anos um republicano ou um democrata para governá-lo, em nome dos interesses da burguesia monopolista:
“a democracia tem um significado moral e ideal (…) atingir a liberdade constitui o objetivo da história política (…) o governo autônomo é um direito inerente aos homens livres (…) podemos mesmo identificar (…) o fato de toda a história do passado haver sido um movimento para a conquista da liberdade. (…) A democracia é uma forma de vida norteada pela fé realizadora nas possibilidades da natureza humana (…) independente de raça, cor [que o digam os negros norte-americanos], sexo, nascimento, família e riqueza material ou cultural. (…) é a fé na capacidade de todas as pessoas para dirigirem sua própria vida, livre de coerção e imposição alheias”. (DEWEY, John. The Philosopher of the Common Man. In: EDMAN, Irwin. John Dewey. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1960, pp. 330-331) “Thomas Jefferson (…) foi o primeiro homem moderno a colocar em termos humanos os princípios da democracia (…) ‘as definições e os axiomas de um governo livre’, como Lincoln os classificou”. (DEWEY, John. Freedom and Culture. In: EDMAN, Irwin, idem, p. 294)
Mas, o próprio Dewey, em 1939 – endossando as opiniões colonialistas de Thomas Jefferson –, deixará evidentes suas reais concepções – imperialistas e anti-democráticas:
“Os fundadores da democracia política americana não eram tão ingenuamente dedicados à teoria pura que desconhecessem a necessidade de condições culturais para o bom êxito da tarefa das formas democráticas. (…) Poderíamos encher páginas e mais páginas com palavras de Thomas Jefferson insistindo (…) seus receios quanto ao bom êxito das instituições republicanas nos países sul-americanos que se haviam libertado do jugo espanhol. (…) Em certa ocasião chegou até a sugerir que a melhor coisa que poderia acontecer às nações sul-americanas seria continuarem sob o domínio nominal da Espanha, com a garantia da França, Rússia [czarista], Holanda e Estados Unidos, até que a experiência do governo autônomo as preparasse para a independência completa.” (DEWEY, John. Freedom …, idem, pp. 285-287)
Certamente, foi tão “nobre preocupação” que fez os norte-americanos ignorarem o “direito inerente aos homens livres” de um “governo autônomo” e imporem aos cubanos, em 1901, pela força das armas, a “Emenda Platt”, estabelecendo um protetorado estadunidense sobre Cuba e mantendo ali, até hoje, contra a vontade do seu povo, a base naval de Guantánamo. A mesma “nobre preocupação” tem sido, certamente, a causa de dezenas de invasões, pelos Estados Unidos, de nações soberanas em todo o mundo, em nome da “sacrossanta democracia liberal”…
Nesse mesmo escrito, Dewey – referindo-se à obsessão norte-americana por amealhar dinheiro – o afirma que “se nossa cultura americana é grandemente pecuniária, não é porque a estrutura primitiva ou inata da natureza humana tenda, por si mesma, a obter lucro pecuniário. É antes porque a cultura complexa estimula, promove e consolida as tendências, inatas”. (DEWEY, John, idem, pp.265-266). Mais uma vez, Dewey recorre em suas explicações às metafísicas “tendências inatas”…
O marxismo de há muito pôs fim a especulações metafísicas acerca de “tendências inatas” e “natureza humana imutável”, mostrando que a essência do homem e a sua “natureza” são constituídas pelo conjunto das relações sociais em que ele atua: “a essência humana não é algo abstrato, interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais.” (MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. MARX, K. e ENGELS, F. Obras Escolhidas, vol. 3. Rio de Janeiro: Vitória, 1963, p. 209). Ou seja, não são os “instintos” ou supostas “tendências inatas” do homem a causa da existência da exploração, da opressão, das agressões e das guerras, como apregoa o pragmatismo, e sim as relações sociais existentes, plenamente mutáveis!
Também em relação à violência do Estado contra os oprimidos, Dewey deixa perceber seu autoritarismo, reduzindo o problema à “eficiência” da repressão: “É o caráter sacrossanto, assim atribuído ao uso da força pelo Estado, que torna pungente a acusação de Tolstoi de que o Estado é o arquiinimigo, a pessoa que recorre à violência em grande escala. Não vejo outra saída exceto dizer que tudo depende da adaptação eficiente dos meios aos fins. A séria acusação ao Estado não é a de que ele usa a força – nada se consegue sem usar força – e sim que não a usa de modo sábio ou eficiente.” (DEWEY John. Force and coercion. SHOOK, John. Os pioneiros…, idem, pp. 187-188)
Mas, deixemos de lado a conversão “metafísica” dos pragmáticos – que nada esclarecem acerca dessa tal “natureza humana imutável” e enaltecem a “sacrossanta propriedade privada” (da qual a imensa maioria da humanidade está excluída), o “indivíduo abstrato” (que “levita” alheio às classes) e a “democracia liberal” (que nos EUA se reduz em escolher, a cada quatro anos, qual o segmento do grande capital que irá dirigir o Estado) – e vejamos o que Richard Rorty, o “guru” do pragmatismo contemporâneo (que se auto-proclama “de esquerda”) nos tem a dizer:
“Gostaria que tivéssemos alcançado uma época em que pudéssemos finalmente nos livrar da convicção (…) de que deve haver maneiras teóricas amplas de achar como por fim à injustiça, como oposto a maneiras experimentais e humildes. (…) penso que há de chegar a época de abandonar os termos ‘capitalismo’ e ‘socialismo’ do vocabulário político da esquerda. Seria uma boa idéia parar de falar sobre ‘a luta anticapitalista’ e substituí-la por alguma coisa banal e não teórica – algo como ‘a luta contra a miséria humana evitável’. (…) Sugiro que comecemos a falar de cobiça e egoísmo, em vez de ideologia burguesa; de ondas de fome e desemprego, em vez de mercadorização do trabalho; de diferenças de gastos por aluno em escolas e acesso diferencial à saúde, em vez da divisão da sociedade em classes. (…) Uma vez que ‘capitalismo’ não pode mais funcionar como o nome da fonte da miséria humana, ou ‘classe trabalhadora’ como o nome de um poder redentor, precisamos encontrar novos nomes para essas coisas (…) Não teremos outro nome para um poder redentor exceto ‘sorte’. (…) Fukuyama sugeriu, e eu concordo, que não há mais projeto romântico para a esquerda além do de tentar criar Welfare States democrático-burgueses e equalizar as oportunidades de vida entre os cidadãos desses Estados por meio da redistribuição de excedente através de economias de mercado. (…) aquilo que os marxistas chamava de ‘reformismo liberal burguês’ é o único caminho que resta à política de esquerda.” (RORTY, Richard. Pragmatismo e Política. São Paulo: Martins, 2005, pp. 25; 54-55, 63-64)
Discurso que procura induzir à completa capitulação frente ao capitalismo putrefato, ao abandono de qualquer teoria de transformação social e à adesão ao mais rasteiro “reformismo burguês”, na esperança de que algumas migalhas da mesa dos poderosos caiam para os “famélicos do mundo”!
Não satisfeito com sua apologia do capitalismo – “eterno e insuperável” –, Rorty esforça-se para convencer- nos das “excelências” da democracia e da sociedade estadunidenses: “vejo a América (…) abrindo uma possibilidade de panoramas democráticos ilimitáveis. Penso que nosso país (…) é um bom exemplo da melhor espécie de sociedade já inventada” (RORTY, idem, p. 31) Que o digam os pobres e os negros e norte-americanos, assim como todos os povos oprimidos pelo poder econômico e pela máquina de guerra dos Estados Unidos…
Para concluirmos nossa análise, é preciso examinar a concepção pragmática de “Estado”, desenvolvida essencialmente por Dewey, que se opõe tanto à teoria “contratualista” – que considera que o Estado surge de um “contrato” entre indivíduos que abrem mão de sua liberdade absoluta para depositá-la nas mãos de um “ente”, situado acima da sociedade, com a tarefa de mediar seus interesses comuns –, quanto à concepção marxista, que afirma:
“O Estado (…) é antes um produto da sociedade quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida em antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’. Este poder (…) é o Estado (…) da classe economicamente dominante, classe que por intermédio dele se converte em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida.” (ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. In: MARX, K. e ENGELS, F. Obras Escolhidas, vol 3…, idem, p. 135-137)
Ao contrário, para Dewey, a democracia é “um modo de vida” que se expressa em distintas “comunidades locais” – família, vizinhança, escola, trabalho, clube, igreja, associação, etc. A partir daí, “a democracia vai vir por si própria, pois democracia é o nome para uma vida de comunhão”. (DEWEY, John. The Public and its Problems. In: POGREBINSCHI, Thamy, idem, p. 144) “De acordo com Dewey, (…) a Grande Comunidade deve ser uma enorme articulação de pequenas comunidades locais. (…) à democracia enquanto um sistema de governo, Dewey chama de democracia política. (…) O que há de essencial neste modo como Dewey encara a democracia (…) é que a democracia deixa de ser vinculada unicamente à política. (…) Os cidadãos deweyanos não precisam de um governo que não seja o deles próprios, a ser exercido de forma direta e constante – seja em casa, na escola, no trabalho, nas inúmeras associações com seus múltiplos fins: a democracia se faz a si mesma em toda parte.” (POGREBINSCGHI, Thamy…, idem, pp. 144-145; 151; 156-158)
Essa abordagem – sedutora por seu apelo à “participação direta” dos indivíduos nos assuntos do seu dia a dia, de forma palpável –, que propala ser isso a “verdadeira democracia”, longe de ser uma abordagem inofensiva, busca desinteressar as pessoas da “política” e da luta pelo Poder do Estado, visto com algo distante e malévolo, contribuindo para manter o “status quo”. “Contentemo-nos com a participação democrática em nossas comunidades locais e deixemos a ‘grande política’, a luta pela hegemonia no Estado, nas mãos dos políticos profissionais” – essa poderia ser a “divisa sagrada” do pragmatismo político!
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Na terceira e última parte do nosso estudo sobre o pragmatismo, abordaremos as suas manifestações mais diretas na luta de classes, como a “subestimação da teoria”, o “praticismo”, o “imediatismo”, o “possibilismo”, o “taticismo”, a “incapacidade de nadar contra a corrente” e o “oportunismo eleitoreiro”.