“Pragmatismo”, veneno insidioso na luta de classes – parte I
No final do século XIX – período de rápido desenvolvimento do capitalismo monopolista e de formação do sistema imperialista mundial – surgiu nos Estados Unidos (país sem qualquer tradição filosófica até os dias de hoje) a chamada “filosofia pragmática”, apresentada por seus próprios fundadores como “um novo nome para um velho modo de pensar” (William James).
Publicado 07/01/2016 11:10
Seus principais formuladores foram Charles Sanders Peirce (1839-1914), William James (1842-1910) e John Dewey (1859-1952). Apesar da sua inconsistência e do seu caráter eclético – com nuances diferenciadas em Peirce, James e Dewey –, o pragmatismo rapidamente caiu nas “boas graças” da burguesia monopolista dos Estados Unidos, que necessitava de uma filosofia que justificasse o seu expansionismo e o seu domínio sobre o mundo, apaziguasse seus explorados internos e externos e propagasse o irracionalismo, desviando a atenção das massas dos grandes problemas sociais para as questões prosaicas do dia a dia.
A cavaleiro do prestígio adquirido pela “experimentação científica” e pretextando o justo combate ao pensamento “metafísico” com suas verdades “absolutas”, “imutáveis” e “universais”, o pragmatismo – com costumam fazer as distintas escolas filosóficas burguesas em tempos de “reação em toda linha” – assumiu, sem meias palavras, velhas e ultrapassadas filosofias idealistas ou materialistas vulgares, como o “empirismo”, o “nominalismo”, o utilitarismo e o “positivismo”, ao mesmo tempo que investiu com volúpia contra a “razão” e o racionalismo:
“A ‘Razão’, como faculdade apartada, (…) de verdades universais, começa agora a impressionar-nos como remota, desinteressante e talvez mesmo insignificante. A Razão (…) que confere à experiência o poder de generalizar e regularizar, nos impressiona como supérflua – criação desnecessária do homem voltado ao formalismo tradicional e à esmerada terminologia.” (DEWEY, John. A Filosofia em reconstrução. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, p. 108)
É sabido que a burguesia – outrora revolucionária e racionalista – transformou-se em sua fase imperialista em uma classe reacionária e obscurantista, temerosa da “razão”, avessa a uma análise científica dos grandes dilemas humanos e ao cotejo de seu comportamento retrógrado com os valores morais historicamente elaborados pela humanidade.
Para essa burguesia decrépita, a ciência precisa ficar restrita ao estudo da natureza e à sua aplicação à produção capitalista, devendo ser expulsa da filosofia e das ciências sociais, onde devem prevalecer as concepções religiosas, as “ciências ocultas”, as superstições, a magia e o misticismo. Não por acaso, o pragmatismo – que tanto propala combater as idéias “absolutas”, “metafísicas”, “não demonstráveis empiricamente” – não tem o menor escrúpulo em defender as idéias fideístas e teológicas como “úteis” e “vantajosas” para a sociedade capitalista e, portanto, “verdadeiras”:
E o “empirista” John Dewey – que bate no peito afirmando que não têm qualquer sentido idéias ou conceitos que não surjam da “experiência” e sejam por ela comprovados – não sente vergonha em afirmar:
Ou seja, se as religiões nos servem de “consolo”, se nos ajudam a “alienar-nos” e “desresponsabilizar-nos” dos graves problemas humanos e sociais gerados pelo capitalismo – deixando para “Deus” a sua solução –, então estarão “empiricamente comprovadas”, por serem “úteis”, trazerem “resultados”, sendo (todas!), portanto, “verdadeiras”. A isso se resume a “comprovação experimental” dos pragmáticos, tão “ciosos” da ciência. Ridicularizando essa absoluta incoerência dos pragmáticos, Lenin diz:
Antes de examinarmos como a filosofia pragmática concebe o “conhecimento” e a “verdade”, convém rever de forma sucinta a concepção marxista acerca dessas mesmas questões, especialmente porque – pretextando combater a metafísica idealista, suas idéias a priori e seus conceitos universais e eternos –, o pragmatismo nega a existência da realidade objetiva, independente das nossas sensações, e a possibilidade de um conhecimento que – através da abstração, da elaboração de conceitos e teorias – ultrapasse a mera experiência sensorial e empírica.
Para o materialismo dialético, o Universo tem uma existência real, objetiva, que independe e é anterior ao aparecimento da consciência humana, a qual, comprovadamente, só veio a surgir muito recentemente. A consciência e o pensamento são produtos do cérebro humano, onde a matéria alcançou o seu mais elevado nível de desenvolvimento. Assim, a matéria é o “primário” (no sentido de originária) e a consciência (“espírito”) é o “secundário” (no sentido de surgir a partir do desenvolvimento da matéria). O Universo é eterno, mas não é imutável, estando em permanente movimento (mudança, transformação, deslocamento), tanto no âmbito “material” como no âmbito das “idéias”. Tudo o que existe se relaciona e interage. A causa essencial de todas as formas de movimento dever ser buscada nas contradições internas e na luta de contrários existente em cada “ser” e no “pensamento”.
A partir dessa concepção materialista-dialética do Universo, como os marxistas explicam o processo de conhecimento humano? Para o marxismo, a realidade material, ao atuar sobre os nossos sentidos, gera as sensações, que dependem do cérebro, dos nervos, da retina, etc., isto é, da matéria organizada de uma determinada maneira. Ao combinar o conjunto de suas sensações (visão, tato, audição, olfato, paladar), a consciência humana constrói a sua “percepção” da realidade. Nesse estágio do conhecimento – alicerçado nas sensações, ponto de partida indispensável para qualquer conhecimento real –, o intelecto humano permanece no âmbito do conhecimento “sensível”, “empírico” (ao nível da “experiência”), onde a realidade é percebida em suas manifestações e relações “externas”, “aparentes”, “secundárias”, “acidentais”, captadas pelos nossos sentidos, que não conseguem separar o “essencial” do “fenomênico” nem descobrir as leis do seu movimento e as suas “relações internas”.
Será somente pela abstração – propriedade da mente que possibilita a elaboração de representações, conceitos, categorias e procedimentos lógicos, tendo por base a generalização e sistematização de múltiplas experiências – que o intelecto humano ultrapassará o conhecimento puramente sensível, fenomênico, e alcançará o conhecimento racional e teórico, capaz de descobrir as leis e as conexões internas que existem na realidade. Assim, para o marxismo, o conhecimento é um “reflexo ativo” (ainda que aproximado) da realidade no cérebro humano. Portanto, o conhecimento só será “verdadeiro” se representar adequadamente o real. E o critério da verdade é a sua comprovação através da prática:
Portanto, a resposta aos agnósticos – que negam ao pensamento humano a capacidade de conhecer a “coisa em si”, visto que, segundo eles, só temos acesso às “sensações” que a realidade nos fornece – será dada através da prática:
O “conhecimento" e a "verdade" na visão pragamática
Examinemos, agora, como o pragmatismo responde à “questão fundamental de toda filosofia (…) da relação entre o pensamento e o ser (…) entre o espírito e a natureza (…) que relação mantém nossos pensamentos sobre o mundo que nos rodeia com esse mesmo mundo? Nosso pensamento é, de fato, capaz de conhecer o mundo real? Podemos com nossas representações e conceitos sobre o mundo real formar uma imagem exata da realidade?” (ENGELS, F. Ludwig Feuerbach…, Idem, pp. 179-180)
Para Charles Peirce – fundador do pragmatismo – é impossível afirmar que o conhecimento é um reflexo da realidade objetiva na consciência do homem, pois o único que podemos conhecer através da “experimentação” – afirma, repetindo as surradas teses do agnosticismo empirista – são as nossas “sensações”. Assim, o pensamento deve limitar-se em buscar a superação da “dúvida” (que nos imobiliza) e elaborar uma “crença estável”, uma “opinião firme”, capaz de dirigir a nossa ação. Por essa razão, o pragmatismo se auto-proclama a “filosofia da ação”. A questão de se essa crença corresponde ou não à realidade é rechaçada pelos pragmáticos como algo impossível de se saber e, portanto, sem qualquer sentido.
A crença será “verdadeira” se a ação nela alicerçada obtiver êxito. Em outras palavras, o significado e a veracidade de qualquer idéia são determinados pela sua utilidade e benefício para o indivíduo que a adota. O que importa é a convicção com que cada um assume a sua crença, condição essencial para que atue com eficácia e alcance o êxito: “Podemos imaginar que procuramos não só uma opinião, mas uma opinião verdadeira. Mas (…) tão logo obtemos a fé firme, ficamos plenamente satisfeitos, seja essa fé verdadeira ou falsa.” (PEIRCE, Ch. Collected papers, vol. 5, p. 232. Cambridge-Massachusetts, 1958-1960. In: BOLGOMOLOV, A.S. A filosofia americana no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 26)
Quanto à questão se o nosso pensamento pode refletir ou não, com alguma fidelidade, as concatenações reais do Universo e suas leis, Peirce responde: “Procurai verificar qualquer lei da natureza e descobrireis que quanto mais precisas forem as vossas observações, tanto mais definidamente elas mostrarão as desordenadas infrações da lei (…) Examinai com suficiente profundidade as suas causas e sereis forçados a admitir que elas são sempre geradas por uma determinação arbitrária ou pelo acaso.” (PEIRCE, Ch. Collected Papers, vol. 6, p. 37. Idem, p. 26)
Aqui, Pierce antecipa a idéia – que seus discípulos desenvolverão ainda mais– de que a realidade é caótica, não sendo regida por nenhuma lei e que todos conceitos e teorias elaboradas pelos homens não passam “construções do intelecto” com o objetivo de “ordenar” os conhecimentos proporcionados pela experiência humana.
William James – que popularizou o pragmatismo – reforça a visão de que o único que podemos conhecer são as sensações fornecidas pelos nossos sentidos, através da “experiência”, e que nossas “idéias” e “teorias” nada mais são do que criações da mente humana para colocar “ordem” no caos existente no Universo, cuja realidade e cujas leis (se é que existem) são inacessíveis a nós. A partir dessa visão “idealista-subjetiva”, James acusa como “metafísica” toda e qualquer pretensão do “pensamento abstrato” em elevar-se acima da mera experiência e do conhecimento empírico e reduziu o “conhecimento” e a “verdade” a funções puramente instrumentais e utilitárias, pois para ser “verdadeiro” basta ser útil (para quem?) e obter “resultados”:
“nenhuma teoria é absolutamente uma transcrição da realidade (…) qualquer delas pode (…) ser útil. (…) são apenas uma linguagem humana, uma taquigrafia conceitual (…) nas quais escrevemos nossos informes sobre a natureza (…) O pragmatista fala a respeito de verdades no plural, sobre sua utilidade e caráter de satisfação, a respeito do êxito com que “trabalham” (…) uma idéia é verdadeira na medida em que acreditar nela é proveitoso para nossas vidas. (…) Verdadeiro é o nome do que quer que prove ser bom no sentido da crença (…) o que é melhor para nós é verdadeiro”. (…) é ‘útil porque é verdadeira’ ou que ‘é verdadeira porque é útil’. Ambas as frases significam a mesma coisa. (…) Schiller diz que o ‘verdadeiro’ é o que ‘funciona’. (…) Dewey diz que a verdade é o que dá satisfação. (…) A verdade é feita (…) no curso dos acontecimentos.” (JAMES, William. Pragmatismo. In: JAMES, DEWEY, VEBLEN, Idem, pp. 14-30)
De maneira resumida, o pragmatismo afirma que não temos como conhecer a “realidade”, pois só podemos conhecer nossas “sensações”. A realidade – se é que existe – é caótica, não sendo regida por nenhuma lei. As idéias, os conceitos e as teorias que elaboramos, são meras “criações” humanas, que buscam dar alguma coerência às nossas sensações. Portanto não existe “verdade” no sentido da adequação do pensamento ao “real”. A verdade se resume a qualquer “crença” útil para quem a adota, que lhe traga “vantagens” e “resultados”.
É difícil encontrar um elogio mais enfático à impotência da razão e ao irracionalismo!
“Tenhamos crenças firmes, úteis e vantajosas"
Não há dúvidas que o pragmatismo – com sua negação da existência da “verdade objetiva” e com sua redução da “verdade” a meras “crenças estáveis” que sejam “úteis” e “tragam vantagens” – prestou e continua prestando uma enorme ajuda ao imperialismo, em particular estadunidense.
Certamente a “firme crença” no “destino manifesto” dos Estados Unidos justificou sua tomada, pela força, de quase metade do território do México, em 1848, trazendo enormes vantagens para o país. Da mesma forma, a “forte convicção” (apesar das evidências em contrário) de que os espanhóis eram os responsáveis pelo afundamento do encouraçado “Maine”, no porto de Havana, em 1898, serviu de pretexto para a declaração de guerra à Espanha e para a imediata e exitosa ocupação do Havaí, Filipinas, Porto Rico e Cuba, até então colônias espanholas. E a ocupação de Guantánamo até os dias de hoje é justificada pela “firme convicção” de que o mar das Caraíbas faz parte do “espaço vital” norte-americano e que Cuba é uma “ameaça” à segurança dos Estados Unidos… Por certo, também, a inabalável convicção de boa parte dos estadunidenses acerca da inferioridade dos negros e da necessidade da segregação racial para manter os privilégios da maioria branca proporcionou bases “verdadeiras” às barbáries cometidas pela Klu Klux Klan e obteve êxito durante longos anos.
Poderíamos continuar exemplificando ad nauseam até onde pode levar a pregação pragmática de que a verdade se reduz apenas à sua “utilidade” e “proveito”.
Caberia perguntar – Serve a quem? É útil para quem?
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[Na segunda parte deste ensaio examinaremos o “pragmatismo moral”, o “pragmatismo jurídico” e o “pragmatismo político e eleitoral”]