PEC 23: prenúncio de uma dura batalha retórica

Trago aqui à superfície algo que chamou a atenção naquele plenário: a força do discurso governista. A mentira da PEC 23 estava bem ensaiada e bem alicerçada

Fotomontagem feita por Artur Nogueira com as fotos de: Sora Shimazaki/Pexels e Cleia Viana/Câmara dos Deputados

A Câmara dos Deputados aprovou em segundo turno a PEC 23/21, conhecida como PEC dos Precatórios ou do Calote. A matéria agora vai ao Senado, onde precisará novamente de maioria qualificada para a sua aprovação. Que não tenha lá a mesma sorte.

Quem acompanhou os debates no plenário da Câmara viu uma oposição aguerrida, esforçada, argumentando, diante de uma maioria governista sólida, imóvel, superior a 308 votos mesmo nos destaques levantados pela oposição. Ao final, o texto global recebeu 323 votos, superior aos 312 alcançados no primeiro turno. Mesmo com a reversão de votos no PDT. Vitória do governo Bolsonaro. Ponto.

Os deputados da maioria governista estavam legislando em causa própria, vide orçamento secreto. Estavam comprometidos com seus esquemas fisiológicos, corruptos até, que maculam princípios constitucionais, já inclusive apontados por maioria no STF. Então, não seria a eloquência e a boa retórica da oposição que moveria esta maioria de suas “convicções”. Isso é fato.

Contudo, trago aqui à superfície algo que chamou a atenção naquele plenário: a força do discurso governista. A mentira da PEC 23 estava bem ensaiada e bem alicerçada.

Chaim Perelman, teórico da retórica, talvez dissesse que as dimensões patológica (páthos) e lógica (logos) do discurso da maioria governista estavam bem atendidas na aparência para o auditório que interessava e interessa ao governo. A dimensão ética (ethos) nem tanto, ou quase nada, mas esta é uma dimensão que pode “se esconder” quando a paixão do debate se impõe. Pode-se estar com a razão, mesmo sem moral para defendê-la.

A maioria governista roubou o discurso da oposição de que era necessário romper o teto de gastos, este congelamento sempre tratado como insano, como de fato o é. Para justificar, bradava a maioria bolsonarista que a terrível pandemia impunha esta medida. E de fato impõe. Quem sempre defendeu o fim do teto de gastos não consegue combater esta PEC de forma ligeira, simples. É preciso um nível de abstração razoável para se compreender e para se mostrar as contradições. E quem estava com o discurso fácil, simples, curto e grosso, neste caso, eram os bolsonaristas do Centrão.

Noutro ponto de alavancagem, bradavam os deputados governistas contra a insensibilidade dos que se insurgiam contra o Auxílio Brasil de R$ 400,00 para as famílias brasileiras. Superior à média de R$ 190,00 do agora extinto Bolsa Família. Outra arapuca retórica que exige da oposição uma longa explicação e que é, portanto, de novo, de difícil assimilação para o senso comum, também conhecido por maioria do eleitorado brasileiro.

Com relação ao calote, a retórica ligeira de socorro aos municípios e suas prefeituras quebradas, que justificaria o desrespeito aos Precatórios, a maioria bolsonarista estava ali abraçada com os prefeitos que em sua maioria acham que segurança jurídica e direito líquido e certo são detalhes menos importantes na nossa institucionalidade e em nossa democracia. A oposição ficou no meio do caminho, concordando com o drama dos prefeitos, mas apontando como saída uma outra PEC, adiando a “solução”.

De onde vejo a oposição tinha e tem razão em suas posições, mas como já dizia Schopenhauer, ter razão não é suficiente para se ganhar um debate. Vencer e convencer não são a mesma coisa.

O governo Bolsonaro, com o calote nos precatórios e a mudança no cálculo do teto de gastos, abrirá no orçamento da União um espaço de pouco mais de R$ 92 Bilhões. O dinheiro é mais que o dobro do que o governo precisaria pra atender ao 17 milhões de beneficiários com os R$ 400,00 até dezembro de 2022, logo após as eleições, como está escrito genericamente no texto da PEC 23, que também traz a garantia de que em 2023 a austeridade fiscal será compensada. É o tombo em 2022 e o coice em 2023. Está claro que esta PEC é ruim para o povo, para o país, e atende a interesses eleitoreiros do presidente miliciano e de sua base parlamentar fisiológica e corrupta, que usará uma margem de cerca de R$ 50 Bilhões no orçamento para tentar emplacar as chamadas emendas do Relator. Esse é o plano.

Mas o governo aprovou isso tudo na Câmara, mudou a Constituição, e com o dedo em riste. Que sirva de alerta aos progressistas, aos democratas, às esquerdas. O presidente Bolsonaro não está morto, tem capacidade de articulação na Câmara, pois se alinhou e entregou o governo aos prazeres do Centrão, os maiores profissionais da política brasileira. As contradições seguem se movendo e o jogo não está jogado.

As forças progressistas e democráticas tem uma dura batalha pela frente. O céu não está perto. Não basta a oposição ter razão e o governo estar muito desgastado, é preciso que esta razão se vista de povo, se amplie ao máximo, transite leve e fácil pelas ruas, praças e vielas do país, nas filas que se formarão nas agências da Caixa Econômica Federal, se e quando o Auxílio Brasil estiver sendo pago aos brasileiros mais vulneráveis. Do contrário, a gente pode até continuar tendo a razão, mas pode perder a eleição.

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