Paris, Atenas e subúrbios (2)
No século passado, à medida que a especulação imobiliária empurrava a classe operária para fora do perímetro urbano de Paris, os que tinham melhores salários alugaram ou mesmo compraram com financiamento casas nos subúrbios.
Publicado 31/08/2009 18:59
Elas estão construídas em terrenos que formam longos retângulos de frente relativamente estreita, na maioria em torno de dez metros, com uns cem, cento e vinte metros de fundo. Essas casas são chamadas “pavillons”; quando têm as parede externas recobertas de pedra são consideradas “maisons meulières” (de “meule”=moinho: lembram as moradias dos moleiros medievais). Entre o portão de entrada e a porta da casa há quase sempre um pequeno jardim, em geral com muitas flores. Bem maior e mais importante é o longo quintal atrás da casa. Assim que a temperatura sobe e os dias se alongam, a mesa do jantar, principalmente quando vêm amigos, é posta num terraço diante da relva, ao lado de flores, cerejeiras carregadas, tomates já bem avermelhados por doze horas de luz diária, muitas groselhas e outras pequenas frutas vermelhas e roxas. É um costume mais antigo e mais popular do que o “barbecue and swimming-pool” com que sonham as camadas médias estadunidenses, traduzido no Brasil pelo “churrasco à beira da piscina”.
Na latitude da região de Paris, o entardecer, durante o período próximo ao solstício de verão, começa em torno das seis e vai até as nove e meia ou dez horas. Por isso os franceses distinguem “après-midi” e “soir” e os italianos, mesmo situados mais abaixo, “pomeriggio” e “sera”. Na Espanha, os espetáculos e outros encontros de verão são anunciados para “las nueve de la tarde”. Em tardes como essas, no final de maio, hospedado em Vitry-sur-Seine, avancei noite adentro, em longas conversas entre veteranas e veteranos na vida e no comunismo. Vitry é uma localidade do subúrbio sul da região parisiense, ao lado de Ivry-sur-Seine, uma das principais, mais antigas e firmes bases vermelhas do PCF. Em 1932, o secretário geral do PCF, Maurice Thorez, foi eleito deputado em Ivry. Até hoje a sombra de Thorez paira indômita nesses velhos baluartes: os comunistas mantêm o poder local nos dois municípios.
Normal que em nossa faixa etária falássemos do passado, dos tempos em que o PCF era a coluna vertebral da esquerda. Não havia renegados no jantar, mas só uma minoria dentre os presentes tinha prosseguido na militância com o mesmo empenho daquela época. Por que recuamos tanto de lá para cá? O vinho encorajou-nos na dura dialética do universal e do particular, dos grandes desastres e dos pequenos desânimos. A maior dúvida era saber quando começou o declínio. Com o euro-comunismo? Com a guinada de Mitterand à direita, já durante seu primeiro mandato presidencial? Com o triunfo da contra-revolução na URSS? Acabamos discutindo só os dois primeiros desses três fatores de deliqüescência.
Assumi o risco de ferir os brios patrióticos dos amigos franceses sustentando que o PCF tinha absorvido o cupim eurocomunista das mãos do já carcomido PCI. A diferença, responderam, é que continuamos de pé, não escondemos nosso nome, não liquidamos nosso Partido. Claro que a questão não é só de nomes, mas mudar de nome já é buscar nova auto-identificação. Dos italianos e dos espanhóis pode-se dizer que intitular-se "eurocomunistas" foi a maneira envergonhada que encontraram para deixar o comunismo, carregando o que lhes interessava de sua herança (os móveis, principalmente) e jogando fora o resto. Enrico Berlinger, o profeta do “valor universal da democracia”, pretendia inserir sua abortada "terceira via" entre o comunismo soviético e a social-democracia. A brilhante idéia foi retomada por Blair, Schroeder e parceiros. Mas agora, com mais objetividade, para pôr a via dita terceira entre o neoliberalismo extremado e a social-democracia. Em 1999, na Iugoslávia, eles explicaram na prática (sobre a cabeça dos sérvios) que por "terceira via" entendiam a trajetória dos mísseis da OTAN: os chefes de Estado e de governo envolvidos naquela operação de aniquilamento cometeram solidariamente infames crimes de guerra.
Entre eles estava o último filhote de Berlinger, D’Alema, chefe do governo italiano, que seguiu a reboque da caravana bélica comandada por Clinton. Tentou sujar-se só um pouco com a destruição da Iugoslávia. De quando em vez assaltava-o um resto de escrúpulo. Em 26 de março, disse estar disposto a intervir para conseguir uma trégua nos bombardeios. Se tentou, não foi levado a sério pelo Pentágono e pelo sócio britânico. A posição miserável de seu governo transpareceu quando, em entrevista à RAI, procurou justificar o apoio italiano ao furor bélico anglo-estadunidense, com o argumento de que “não poderíamos lavar as mãos” (diante do que ocorria no Kosovo). Trocadilho ou ato falho? No país da máfia, a primeira grande ofensiva político-judiciária contra a imensa organização criminosa ítalo-estadunidense intitulou-se operação "mãos limpas".
Também o social-democrata Jospin, chefe do governo francês, quis sujar-se só pela metade. Apoiou a fundo a destruição da Sérvia e a entrega do Kosovo à máfia albanesa, mas condenou os bombardeios crônicos do Iraque pela dupla Clinton-Blair. Mais arrogante, porém que o colega italiano, declarou publicamente que o bombardeio da Sérvia era uma “guerra pela civilização”. Nove anos antes, o melífluo liberal Norberto Bobbio havia qualificado de "guerra justa" a agressão colonial dos Estados Unidos e das potências capitalistas satélites contra o Iraque. [IE1] Voltou a se pronunciar a propósito da Sérvia, para aplaudir os bombardeios, que também foram abençoados pelo arcebispo de Canterbury.
Ninguém dentre os amigos participantes da noturna tertúlia de Vitry contestou que o governo Jospin tinha arruinado a segunda chance histórica que teve a esquerda francesa para oferecer uma resposta avançada à ofensiva neoliberal. A primeira tinha sido comprometida por François Mitterand. Reeleito presidente, em 5 e 12 de junho de 1988, ele dissolveu a Assembléia Nacional para convocar novas eleições legislativas, nas quais a esquerda obteve maioria absoluta: a bancada socialista, incluídos os chamados “apparentés”, isto é, deputados próximos que se agregaram ao bloco parlamentar do PS, atingiu 275 membros, isto é 48% da representação nacional. Os comunistas elegeram 23 deputados e sua bancada agregou dois “apparentés”. Maioria absoluta para a esquerda, portanto: 300 deputados num total de 575. Entretanto, o que essa maioria fez (ou não fez) do mandato que o corpo eleitoral lhe confiou explica em boa medida suas derrotas posteriores.
(continua)