O pano de fundo do conflito na Ucrânia
Os EUA reagem a esta multipolaridade buscando ao menos causar um retorno a uma bipolarização, onde volte a ter um protagonismo que vai desaparecendo do seu horizonte
Publicado 04/03/2022 10:45 | Editado 04/03/2022 12:09
Não há como se compreender a natureza do conflito na Ucrânia sem se socorrer na história e em como a geografia desenha os caminhos para esta mesma história. Quanto mais distante formos no passado para compreender o conflito e os argumentos utilizados de parte a parte, mais rica e mais complexa se torna a compreensão. Contudo, a história dos últimos trinta anos é o que há de mais determinante e inescapável para esta compreensão. Sem isso, a opinião pública pode ficar refém do método conveniente para os porta-vozes oficiais do “ocidente”, de iniciar a narrativa a partir de particularidades e fatos isolados, de subjetividades construídas no imaginário social através de forte contrapropaganda, bem ao gosto de um paradigma liberal hipócrita e mentiroso que acaba seduzindo até setores e pessoas que se dizem de esquerda.
Em apenas trinta anos a sociedade mundial saiu de uma realidade de polaridade entre dois blocos de poder, um centralizado pelos EUA e outro pela extinta URSS, e experimentou na sequência e de forma muito rápida um mundo unipolar, com a hegemonia dos EUA e sob a doutrina neoliberal. Esta unipolaridade e sua consequente arrogância bélica, assim como o desastre de sua doutrina econômica e política, abriu as portas para uma reação da sociedade mundial. A crise econômica de 2008 tem papel fundamental nesta reação. A surpreendente robustez do crescimento da China, a reorganização da Rússia como potência econômica e militar, e o protagonismo de países emergentes como o Brasil no cenário político e econômico, além de outros, são elementos centrais deste processo. Num outro quadrante das reações, vimos o crescimento de nacionalismos, fundamentalismos religiosos e o crescimento da extrema-direita por todo o mundo.
Vivemos então, há cerca de vinte anos, experimentando a constituição de um mundo não mais unipolar ou bipolar, mas multipolar, com o G7 dando lugar ao G20, com blocos regionais sendo construídos por afinidades fronteiriças, mas também arranjos geopolíticos que conectam continentes, como o Brics, que une Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul num bloco poderosíssimo que chegou a constituir um fundo de recursos próprios da ordem de US$ 200 bilhões com o objetivo de não mais depender das astúcias de organismos como o Banco Mundial. Concorrendo a favor desta multipolaridade. Neste mesmo período também vivemos uma revolução tecnológica que permitiu uma globalização distinta daquela preconizada pelo neoliberalismo. Um fluxo antes impensável de informações, de recursos, de comércio e de cultura fecha espaços para hegemonismos e mais ainda para supremacias, eis que a geografia mesma foi digitalizada, combinando ao mesmo tempo novos conceitos de fronteiras e fragmentações que vão além de nacionalidades. A multipolaridade é um fato.
A atitude dos EUA diante desta nova situação em curso é a guerra e golpes para desestabilizar a nova ordem mundial que se apresenta inexorável. Não apenas as guerras e golpes tradicionais, tão usados durante os tempos da “guerra fria”, mas supostas “revoluções coloridas”, guerras híbridas, surfando e se apropriando de eventos internos aos países, como bem vivemos aqui no Brasil a partir de 2013, numa escalada que envolveu a captura de um setor do Poder Judiciário (Lava Jato), um golpe para depor uma presidenta eleita democraticamente (Dilma), e a prisão de um candidato favorito às eleições presidenciais (Lula), para entregar o país a um fantoche (Bolsonaro) que literalmente bate continência à bandeira dos EUA. O mesmo roteiro foi utilizado em maior ou menor medida na Venezuela, Bolívia, Argentina, Equador, na Líbia, Iraque, Afeganistão, com a China através de Taiwan. E na Ucrânia, onde um presidente eleito democraticamente, por negar-se a assinar a adesão do país à União Europeia, foi deposto num golpe sangrento e teve que se refugiar na Rússia. Desde então a Ucrânia vive uma guerra interna, cujos detalhes não cabem neste artigo de opinião.
Paralelo a tudo isto, os EUA também reagem a esta multipolaridade buscando ao menos causar um retorno a uma bipolarização, onde volte a ter um protagonismo que vai desaparecendo do seu horizonte. Para tanto tem usado a Otan para gerar desequilíbrios regionais e assim causar reações de nações não alinhadas, o que acaba precipitando um efeito em cadeia: mais reação, mais Otan, mais reação, e assim por diante e, portanto, mais necessidade de EUA e de sua indústria bélica. Desde o fim da URSS e de todos os arranjos dinamizados por ela, como o Pacto de Varsóvia, a Otan, a rigor, perdeu seu objeto, sua razão de existir. Com o advento da multipolaridade, perdeu mais ainda, pois neste momento caberia à ONU ter mais protagonismo e centralidade nos conflitos entre ou interno às nações. Contudo, o que se vê é um fortalecimento da Otan, que inclusive tem substituído a ONU em supostas missões de paz fora de seu escopo de atuação: África, Ásia e Oriente Médio.
Especificamente com relação à Rússia, a estratégia dos EUA via Otan foi e é cercá-la de bases militares, descumprindo acordos internacionais que determinavam que a Otan não se expandiria ao Leste da Europa, rumo às fronteiras russas. Porém, desde o fim da URSS, a Otan expandiu suas bases militares para Polônia, República Tcheca, Romênia, Bulgária, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Lituânia, Letônia, Albânia, Croácia, Montenegro e Macedônia do Norte. Diante disto, o governo russo estabeleceu que a Ucrânia seria uma linha vermelha pela qual a Otan não deveria ultrapassar, pois sua imensa fronteira a oeste já estava tomada por bases militares cujas miras estavam apontadas para o território russo.
EUA e Otan sabiam que a Rússia não aceitaria o ingresso da Ucrânia na Otan, por isso insistiram, deixando a Rússia com duas opções: ou ficava refém de um cinturão de bases militares hostis, anulando o equilíbrio bélico existente hoje entre as potências militares, e estabelecendo uma supremacia militar “pró ocidente” que abriria as portas de novo para uma unipolaridade; ou a Rússia atuaria sobre o território ucraniano, num enfrentamento físico, numa guerra desproporcional, gerando assim um brutal aprofundamento das sanções – que já vêm desde 2014, quando a Rússia retomou o território da Crimeia – contra a Rússia e um forte sentimento anti-Rússia pelo mundo. Neste cálculo dos EUA e Otan está o fato que a China não deixaria a Rússia sucumbir isolada nesta posição, fato que está se confirmando antes e depois do início do conflito. O que os EUA ganham com isso: a volta da pertinência de sua narrativa de bipolaridade, e a volta de seu protagonismo como líder de um bloco político, econômico e militar. Está acontecendo agora este segundo cenário.
A partir deste pano de fundo é que podemos perceber com mais clareza qual o papel das particularidades do conflito. Os EUA não querem que a Europa Ocidental intensifique suas relações econômicas com a Rússia, sobretudo na dependência de gás e petróleo. Interromper a construção do Nord Stream 2, gasoduto de 1,2 mil quilômetros entre a Rússia e a Alemanha, para que a Europa fique dependente dos gás produzido nos EUA está nesta pauta, assim como outras consequências das sanções que ainda são imprevisíveis neste momento. Há por óbvio as questões das nacionalidades e atritos de natureza histórica que envolvem a formação da Ucrânia como país, e que vinha se desenvolvendo com uma luta separatista interna e que tinha um pacto entre os conflitantes que não vinha sendo respeitado, o Acordo de Minsk.
A guerra é um recurso extremo, indesejável, terrível. Mas é um fenômeno que precisa ser compreendido em cada caso, na sua inteireza e profundidade, condição primeira para que se fale em paz, pois do contrário as narrativas superficiais se misturam com ingenuidades, desconhecimento, preconceitos, mentiras, ou mesmo propaganda de mais guerra com o suposto discurso de paz.