O Lobo e a Canária

Os pássaros partiram para nunca mais e levaram o seu guardião, um lobo cansado de guerra, mas com o peito repleto de amor e glória.

Homenagem a Zagallo pelos 60 anos de seu primeiro título com o Brasil. Foto: Lucas Figueiredo/CBF

Mário Jorge Lobo Zagallo era um jogador comum em sua época que atuava pelo Botafogo, embora tivesse habilidade, se destacava mais pela entrega e pela inteligência tática em um time que contava com craques como Didi, Nilton Santos e Garrincha. Não é que fosse ruim, é o plantel da época que não o deixava sobressair.

Foi convocado para a Copa de 1958 para a vaga que todos sabiam ser de Canhoteiro e ganhou inimigos por causa disso. Como o Garrincha da ponta esquerda não seria convocado? Parecia um disparate, o Brasil abrir mão de tal talento e genialidade em prol de um jogador sem tantas qualidades, sem tantos atributos artísticos.

Porém, Zagallo mostrou a que veio e sua leitura de jogo dentro de campo o transformou em um elemento surpresa que poderia atuar ora na defesa, dando segurança à zaga, ora no ataque como alguém que nunca desistia da bola.

Ele sabia a hora que da ponta esquerda poderia ir pelo meio, é marcador e armador ao mesmo tempo, aliando a garra com a inteligência. Se precisasse, faria o trabalho sujo, aquele que poucas vezes é reconhecido e visto, mas que é essencial para o andamento do jogo coletivo.

O que poucos sabiam é que ali nascia não apenas uma identidade nacional, um cognome único para um único futebol: o futebol arte, mas uma relação de amor entre um lobo e uma canarinha. Como não podia voar, se apaixonou por quem podia e teve a certeza de que ali para frente daria a sua vida para proteger e fazer com que a canária alçasse voos maiores e mais bonitos.

Os olhos do lobo eram vivos e sagazes, seu rosto e sua audácia mostravam sua ferocidade e disciplina. Contudo, quando estava em presença dela, o lobo se desmanchava em ternura e se tornava puro deleite e encantamento.

Na final contra a Suécia, Zagallo bate o escanteio, a bola volta, ele dribla a zaga adversária e faz o gol, vibra e finalmente aparece, salta da função tática para seu instante de protagonismo.

O que poucos sabiam é que ali se selava o casamento para sempre entre um lobo e uma canária, e é difícil encontrar histórias semelhantes no mundo da bola, uma história de tanta entrega, paixão e vivacidade em prol de uma camisa, de um símbolo, de um voo. O voo do futebol brasileiro para os mais altos píncaros da eternidade, denominado o jogo bonito para os estrangeiros.

Por amor, não teve lesão que o segurasse de ser bicampeão do mundo em 1962 e por amor novamente aceitou ser técnico da seleção em 1970.  Ele conseguiu lapidar o diamante bruto deixado por João Saldanha que era um voo livre, um pássaro selvagem, mas se perdia na aterrissagem e na direção. A canarinha precisava aprender também a pousar sem deixar a sua beleza.

Os europeus, depois de tomarem duas surras vergonhosas em 1958 e 1962, tinham evoluído muito em suas concepções de jogo, principalmente por apostarem no preparo físico. Era preciso antropofogizar a evolução dos europeus sem perder a essência, o jogo bonito, o voo colorido e estonteante.

Como um lobo, não bastava atacar a presa, pois antes de atacar, precisava ter estratégia, a canarinha se deixasse iria longe, como pássaro que é, mas ficaria sem o tronco das árvores para que alguém pudesse apreciar o seu canto e a sua beleza.

Por isso, o lobo lhe ensinou a esperar mais, a recuar quando fosse necessário e a sair do ninho apenas quando tivesse seu instrumento em mãos, ou melhor, nos pés, a bola e pudesse tocá-la com precisão de um maestro e coletivamente como uma orquestra chegar ao gol.

Nesse momento a canarinha poderia ser solta, dançar pelos ares, driblar todas as montanhas e mares e pousar como uma bailarina da bola no último galho da Samaúma para cantar sua ode final. Uma cena simbólica de uma exibição digna da ópera O Guarani, imortalizada no 4 gol do Brasil contra a Itália. A roubada de bola do Tostão e o passe para Clodoaldo, de Clodoaldo para Pelé, de Pelé para Gerson e esse de novo para Clodoaldo que resolve driblar, passar pelo meio de campo como um assobio de um canário à toa.

E a bola vai para Rivellino, Rivellino lança na frente para Jairzinho, Jairzinho deixa para Pelé que faz um passe tão delicado e inesperado para a direita, sem olhar, como se o roçar de uma plumagem macia pudesse fazer carícias no gramado.

Inesperadamente, surge de trás o chute potente de Carlos Alberto Torres a cravar a história nas redes.

Um time pulsante, artístico, habilidoso, técnico, mas antes de tudo cerebral, eis o auge do amor entre o lobo e a canária.

Como pai e avô, Zagallo não abandonou seus filhos e lá estava em 1994 como coordenador técnico gritando é tetra e tirando o Brasil de uma fila de 24 anos, mas principalmente a respaldar uma nova geração vitoriosa, a única a chegar em três finais consecutivas e conquistar duas Copas.

Talvez, o único erro do velho lobo foi não permitir Romário na Copa de 1998. Romário e Ronaldo teria sido uma dupla ainda maior que Romário e Bebeto. Só pode não o ter levado por puro ciúme. Ninguém estava autorizado a mostrar mais amor à canarinha do que ele! Só ele em sua consciência sabia cuidar com tanto zelo e encanto, sabia defendê-la de qualquer outro domínio. Por ela, destruía todos os desprezos e desconfianças, a força de seus olhos deslizavam no céu em suas asas no momento em que a grama era tocada pelos seus soldados.

O que ele não admitia, o Zagallo, é que um jogador fosse maior ou aparecesse mais que sua paixão! Este deveria aprender com ele que o amor é servidão, que a canarinha estava acima de qualquer altitude, a seleção brasileira como coletivo e como identidade, é esta que deveria prevalecer, porque antes de tudo ela é um símbolo de nossa brasilidade e de nossa consciência como povo.

A imagem mais emblemática disso é a semifinal contra a Holanda, a força que ele coloca olhando nos olhos de cada jogador, seu entusiasmo, sua vibração, suas esperanças. É o respeito inimaginável ao objeto de sua adoração, mas antes de tudo a sua própria história de vida e para aquela que realmente mexeu com o seu coração.

Ostentar quatro Copas do Mundo é algo inimaginável para muitos países, e essa fera sozinha conseguiu, ou melhor, ajudou a instituir e perpetuar o respeito e a admiração por uma camisa que hoje parece que foi jogada no lixo. Nada para atentar mais contra os amores do que o total desprezo pelas coisas bonitas como é esse futebol moderno, lucroso e arrogante. Só sobrou o dinheiro, diriam os poetas. Os pássaros partiram para nunca mais e levaram o seu guardião, um lobo cansado de guerra, mas com o peito repleto de amor e glória.

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