O “Lepo Lepo”, o final do império romano e o socialismo

O maior hit do carnaval foi uma música cheia de pretensão. Contendo uma certa negação à pretensão. A curta letra de “Lepo Lepo”, da banda baiana Psirico, acusa tanta profundidade que o próprio vocalista da banda a insinua como “um grito contra o capitalismo”. No mínimo interessante.

A letra é simples. Trata de um cara que com salários atrasados e em plena regressão social utiliza sua situação para buscar a verdade nos fatos: se sua relação é sustentada no suposto interesse material de sua parceira ou se é amor de fato o que mantém de pé a união. Trata-se, sim, de um grito contra o capitalismo e, de forma mais direta, à mercantilização das relações humanas. Mas a contemporaneidade da música não poderia deixar escapar um certo grau de machismo. Sei lá, mas amor sem tesão é, no máximo carinho e consideração profundos. É, em pequena medida, face da mesma moeda do amor baseado nas leis do mercado. A música não foge da verdade, também, neste aspecto.

Por que chama tanto a atenção a letra desta música, causando até reflexão por alguns – inclusive por este que vos escreve? É simples, pois trata de um traço nada fino da realidade. A busca por estabilidade material como pressuposto ao amor está mais naturalizado do que nunca numa sociedade de classes e onde a mobilidade social é seriamente comprometida. O subjetivo humano, nestes pobres tempos, de forma seletiva separa o rico do pobre, o carro do ônibus e o poder do não poder.

Não é nenhuma novidade nada disso em nossos próprios círculos sociais – algo que não se restringe a rodas de gente conservadora. Não é incomum conhecer casos de pessoas que antes de assumir algum alto cargo e que vivia uma vida simples, e com certa dificuldade, feio fisicamente, não era ao menos notado. Já da noite para o dia e com uma série de coincidências a seu favor, passou a ser a pessoa mais linda, interessante, disputada e motivo de viração de pescoço nas chamadas baladas. Todos nós temos ao menos umas dez histórias deste tipo para contar, daí a praga da naturalização do processo.

A capitalismo apodrecido exacerba seus traços mais deprimentes, entre tais o famoso fetiche da mercadoria. A mercadoria passa a ter uma vontade independente de seus produtores. Isso quer dizer que os próprios consumidores se enxergam como parte da mercadoria e, consequentemente, espelham-se nos verdadeiros donos da mercadoria. O trabalhador sonha em ser patrão, destila desejo em fazer inveja aos que não “chegaram lá”. Daí traços medievais de personalidade serem cada vez mais comuns: “pegar” alguém com dinheiro e poder, subir fácil na vida, sentimentos de vingança diante da contradição e da expectativa não correspondida…

O “Lepo Lepo” chama atenção, assim, para algo muito inerente à dita “pré-história da humanidade”. Esta pré-história da humanidade se expõe de forma cíclica. O final do Império Romano grassou o individualismo, o hedonismo, o “amor livre” e um “salve-se quem puder”. Incluindo aí a necessidade de se agarrar a algum membro seja da corte romana ou algum senador mais abastado como forma de garantir alguma estabilidade num futuro cada vez mais incerto diante da crescente ameaça de invasão de tribos germânicas enfurecidas, chamadas de bárbaras. A história contada em “Lepo Lepo” está longe de uma alegoria. Em grande medida demonstra que a história se repete, agora como tragédia.

O que isso que escrevo tem a ver com o socialismo? Será que somente no socialismo o amor será vivido em sua plenitude, sem perturbações materiais ou necessidade da “miséria da gramática” como forma de contornar situações de submissão?

Honestamente não tenho como dar essa resposta agora. Mas tenho claro algumas coisas. Nunca acreditei na máxima de Che Guevara acerca da construção do “homem novo”. Não nos parâmetros estabelecidos por nossa querido guerrilheiro heroico. Acredito que o “homem novo” será fruto de novas relações sociais e de produção que, por sua vez, demandam enorme acúmulo de forças produtivas para sua viabilização. Na escassez não produziremos nenhum homem de novo tipo. Antes disso, a escassez é uma linha de produção fordista que coloca na praça cada vez mais gente como a descrita na letra de “Lepo Lepo”.

Um problema só é passivo de compreensão se tomado como problema histórico. Neste sentido, entre o homem da pré-história, cheio de egoísmo, pequenos sentimentos pautados pela sobrevivência e o “homem novo” existe um longo processo de transição de séculos, até um milênio talvez. A letra dos nossos amigos do Psirico descreve relações sociais mais próximas da pré-história propriamente dita do que a desejada por Guevara e outros. Trato aqui, nestas linhas, de pré-história da humanidade.

E se a verdadeira história humana só poderá ser contada na transição socialismo x comunismo o que resta é saudar esses baianos pela coragem. Saudar seu “grito contra o capitalismo” mesmo escrito e cantado sem grandes pretensões sociológicas. Que ao menos, nós que nos percebemos como a “vanguarda do proletariado” e, consequentemente, “vanguarda humana” perceba a verdadeira natureza do processo. Não lutamos somente contra o capitalismo, mas também contra a decadência humana. E não temos o direito de ser agentes, também, do prólogo de um mundo cada vez mais desumano e sem alma.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor