O inspetor Javert

A primeira condenação de Zé Dirceu deu-se quando lhe atribuíram responsabilidade pela eleição de Lula, e, provavelmente, por se temer que ele seria o candidato a suceder o retirante nordestino no comando da Nação. A segunda condenação de Zé Dirceu deu-se quando ele, já ministro do governo brasileiro, fez sua primeira visita à pátria da Revolução Cubana, pioneiro e emblemático movimento progressista, exemplo de conquista de soberania ante o mundo.

A terceira condenação de Zé Dirceu deu-se quando ele comandou a grande resistência contra a Alca, tentativa dos habituais patrões do Norte de amarrarem o comércio brasileiro aos interesses expansionista do capital estadunidense predador.

A quarta condenação de Zé Dirceu deu-se ainda na sua condição de deputado, quando elaborou o único projeto de lei no Brasil de taxação das grandes fortunas. A quinta, a sexta, a sétima… condenações deram-se no decorrer do governo Lula, do qual Zé sempre foi figura de relevo. Foi pela adoção de atitudes de soberania e independência por nossa política externa, quando se consagrou o bordão de não se falar fino com as grandes potências, nem falar grosso com os países menores. Deu-se, também, quando o Brasil passou a diversificar suas atenções de alteridade geopolítica, rompendo definitivamente com o viralatismo rodriguiano dos nossos governantes que sempre consideraram o Brasil como quintal dos Estados Unidos.

Idem, idem quando o governo brasileiro deixou de priorizar a realização de superávit primário para pagar antigos e suspeitosos juros da dívida, em detrimento dos investimentos públicos (que o mercado chama de “gastos do governo”). E quando passa a priorizar a sustentação de programas como Minha Casa, Minha Vida, Fies (crédito estudantil) e o plano de agricultura familiar. Além do mais, transforma esses programas em políticas de Estado. Ibidem quando o Brasil começou a despertar as atenções do mundo como protagonista da geopolítica mundial, sem alinhamento automático com a chamada “comunidade internacional”, nome dado às nações que se aliam submissos em torno dos Estados Unidos e da Otan.

Por que se deu o grande esforço condenatório? Não é difícil reconhecer nas grandes empresas de mídia deste país a contrariedade ante o governo pós 2002. Contrariadas seus interesses econômicos imediatos, por não mais contarem automaticamente com habituais perdões ou renúncias fiscais sobre importações de papel e de equipamentos. Contrariadas pelos movimentos dentro do governo que pretende discutir a democratização da informação. Também contrariadas pela recusa do nosso governo em intervir nos embates entre a mídia golpista e os governos populares instalados em Nossa América. E, afinal, pela democratização da conta oficial de comunicação, que passou a contemplar veículos de cidades menores.

Como se deu a condenação? Capas e mais capas, obsessivas, renitentes, de jornais e revistas; manchetes e mais manchetes continuadas e repetidas, distorcendo, omitindo; dias, meses, anos a fio. Ao lado, uma descuidada e acrítica massa de ouvintes, leitores, enfim chamada “opinião pública”. Esse o pano de fundo de um julgamento feito sob a pressão permanente do foco midiático, a estimular narcisismos emergentes. Ministros acorrendo em busca de instrumentos jurídicos que substituíssem faltas e inconsistências de provas E, desse modo, satisfazer os anseios da “opinião pública”. Até se descobrir que o impreciso e subjetivo dito “onde há fumaça, há fogo” poderia muito bem ser representado por tal “domínio do fato”. Pra que prova?

É preciso entender que a condenação de Zé Dirceu se confunde com a condenação do governo Lula. Foi sempre este o esforço desde o começo. Fez parte do processo de reeleição, continuou no segundo mandato, se estendeu à eleição de Dilma. Perdura hoje, mesmo após a condenação dos chamados “mensaleiros”, pela performática ação persecutória de presidente do Supremo, Joaquim Barbosa. Uma perseguição a lembrar a renitência do inspetor Javert contra Jean Valjean, de Victor Hugo, em “Les Misérables”. Ação esta que tem recebido manifestações contrárias de significativas personalidades do meio jurídico, sem conotação política.

Para permanecer no foco da mídia, o estouvado inspetor Barbosa apela mais uma vez para manobra antijurídica: a descabida exigência de cumprimento de um sexto da pena, antes que o preso possa exercer um trabalho digno em regime semiaberto. Esta norma, dizem todos os juristas, é uma exigência apenas para os presos em regime fechado que pleiteiam o regime semiaberto. No caso de Zé Dirceu, há uma deliberação do julgamento final do Supremo de que seu sistema carcerário será obrigatoriamente semiaberto. Negar-lhe este direito é lhe atribuir, na prática, mais uma condenação, sem julgamento desta vez. Assim, Javert mantém exposta, durante o processo eleitoral, a pauta jornalística da farsa do “mensalão”.

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