O golaço de Cantona
Eric Cantona sempre foi um craque considerado polêmico. Nos clubes por onde passou, colecionou suspensões e até problemas com a polícia. Foi cortado da seleção francesa, campeã mundial de 1998, por seu extenso “currículo”. Mas nunca deixou de falar o que pensava. Nada mais irritante à ordem. E como pensava…
Publicado 16/12/2010 23:25
O craque francês adquiriu uma imensidão de apelidos que faziam referência a seu comportamento pouco convencional. Agrediu treinadores, jogadores, jornalistas, policiais e torcedores ao longo da carreira. Foi um andarilho entre clubes franceses e ingleses, até se estabelecer no Manchester United.
Nada disso apagava o seu futebol espetacular. Após tantas idas e vindas, sua passagem pelos Red Devils de Manchester o tornou ídolo do clube. Lá fez inúmeros gols, vários deles incríveis, interrompeu o jejum de títulos, vencendo quatro Campeonatos Ingleses, três Supercopas da Inglaterra e duas Copas da Inglaterra. Se Elizabeth III reinava de Londres, ele reinava de Manchester.
Digamos que ele foi mais eficiente que Bonaparte, ao tomar para si uma parte da Inglaterra.
No entanto, a disputa de uma Copa do Mundo pela seleção francesa é uma lacuna em sua carreira e em nossas existências. Imaginem só, Cantona e Zidane juntos naquele time francês de 98?!?
Pendurou as chuteiras aos 30 anos, em 98, ao saber que não iria à Copa. Apesar dos apelos fanáticos de dirigentes, jogadores e torcedores, não cedeu. Acabava ali sua história no futebol.
Depois disso, treinou o time francês de futebol de areia, até jogou um pouco por lá, virou ator (assistam À procura de Eric, de Ken Loach. Onde Cantona interpreta a si mesmo como psicólogo imaginário de um carteiro. Fantástico!) e continuou falando o que pensa.
A última de Cantona foi um escândalo para os economistas conservadores europeus. Um problema para o governo de Sarkozy e, em especial, para o sistema bancário francês e, quiçá, europeu.
Cantona recomendou uma espécie de revolução sem sangue, sem armas e absolutamente legal. Propôs que no dia 7 de dezembro, todos retirassem o dinheiro de suas contas nos bancos. Esvaziassem as instituições financeiras.
Segundo ele, isso geraria um colapso no sistema daqueles que lucram diariamente com a miséria do povo. A imprensa, com o auxílio de especialistas selecionados a dedo, linchou Cantona. Alguns deles, inclusive, até admitiram que o resultado previsto por Cantona estava correto, mas trataram de minimizar o impacto das palavras de Cantona e sua capacidade de mobilização.
A ideia de que jogadores de futebol servem para jogar futebol, e nada mais, ficou latente no discurso dos economistas e membros do Governo francês através da imprensa.
Este caso lembra um pouco a luta de Sócrates, o filósofo do futebol brasileiro, para que jogadores de futebol tivessem direito a pensar e expressar o que pensam em plena ditadura militar no Brasil.
A Democracia Corinthiana baseava-se nesta ideia e, durante algum tempo, tensionou o noticiário esportivo do final dos anos 70 ao início dos anos 80. Afinal, o que é o jogador? Um burro de carga destinado a cumprir ordens do treinador, tão somente?
Saber que jogadores de futebol, com toda sua penetração na sociedade, pensam e falam o que pensam é ultrajante para a ordem. As elites insistem em não permitir que isso aconteça, para não ver seus castelos começarem a ruir.
O que menos importa é se a proposta de Cantona vingou e o sistema financeiro europeu foi devastado. Importante é que ele pensa, fala o que pensa e, assim, existe!
É memorável partindo de alguém de um meio onde pouco se pensa ou se fala a não ser sobre futebol. E vez por outra, mesmo sobre futebol, pouco se pode aproveitar.
A ousadia e a subversão são os gols mais bonitos que o futebol pode proporcionar. Que digam Afonsinho, Sócrates, Maradona, entre outros. Agora, o golaço foi de Cantona. E que golaço!