O driblador
Todas as especulações táticas, todas as teorias mirabolantes e os números gerados não são nada para o driblador. As linhas do campo, a meta do adversário desaparecem, o driblador subverte a intenção e mapa do jogo
Publicado 28/03/2024 09:26
O driblador no futebol é uma espécie de anarquista, um subversivo ao sistema do futebol como espetáculo capitalista. O driblador é anti lucro, anti aos modernos. Ele é em prol sempre do povo, da beleza, da alegria. Todo driblador é contra a ideia do jogador correr mais que a bola, de ser mais força do que técnica ou de ser apenas objeto de consumo. O que ele quer é que a redonda durma ao seu lado e o acompanhe como aquela criança que um dia foi em um sonho. Pois o driblador nunca deixou de ser moleque, um moleque endiabrado a fazer travessuras e gozações com a cara dos outros. Mas tudo sem maldade, apenas pela arte da brincadeira, pela ingenuidade do feito. Um saci de duas pernas. Um bagunceiro.
Todas as especulações táticas, todas as teorias mirabolantes e os números gerados não são nada para o driblador. As linhas do campo, a meta do adversário desaparecem, o driblador subverte a intenção e mapa do jogo. Futebol para ele é diversão e mais do que isso, é arte vivida em um palco, ou melhor, nos gramados, quadras, ruas, areias e vielas da vida. Não existe espaço que não possa ser encenado, como não existe bola que não possa ser convidada para a sua dança, para o seu show! De capotão, de plástico, de papel, de jornal, de meia, de saco, costurada, remendada, murcha, de fita adesiva e todas invenções possíveis que passa a ser também a protagonista do teatro chamado futebol. Pois no drible, ela dança e todos olham para ela, mais do que para as corridas e quedas.
Finalmente alguém a trata como deve ser, uma esfera de adoração e pertencimento, ela nos pés numa infinita valsa com seu condutor viajam naquele espaço do tempo e nada, nem as propagandas vazias, nem os listeiros sedentos pelo revisionismo sem lógica são maiores do que esse momento.
Leia também: Pelé, o rei
É uma entrega ao poético, nada a ver com as cifras dos ridículos. E são os aplausos e os gritos ao seu nome que o fazem entender que está no centro de um circo, no roteiro de um filme, no cerne de uma peça em estado de celebração, em seu instante supremo. A ovação alimenta o seu desejo de continuar artista, antes de ser jogador.
O cenário para o driblador é o que menos importa porque qualquer cantinho espremido que ele possa pular e girar é mais do que o limite da realidade, é devaneio e saudade. Saudade de quando se podia jogar bola de maneira ingênua e descompromissada, de quando o futebol era mais lúdico e belo, mais solto e principalmente, popular. Sim, porque o driblador antes de tudo é esse Robin Hood a repartir o pão do espetáculo aos esfomeados de beleza na vida. É aquele que serve aos justos com seus instantes de opulência, divide o infinito da fama com tantos anônimos sem rostos das arquibancadas, com aquele que gasta o pão da fome para comer um pouco daquilo que não se compra, de outras fomes muito mais pujantes. A fome que toda alma tem de poesia para existir!
O driblador responde a essa fome. Nada de gol, nada de resultado, nada de vitórias, domínios, sobrepor às belezas ornamentais dos gestos improvisados. Aliás, o drible é a antítese do gol e até rivaliza com ele. Se o gol é o orgasmo do futebol, os dribles são as carícias indispensáveis para chegar a qualquer êxtase. Só os poetas e os românticos sabem ostentar a inutilidade preciosa, aquela que nossas almas anseiam para continuar vivendo e não sermos apenas parasitas a depredar esta casa tão redonda quanto a companheira desta brincadeira.
Não é por acaso que todo driblador é indisciplinado. Ele sofre para lidar com a praticidade e os compromissos do cotidiano, é irresponsável, geralmente não sabe trabalhar com o dinheiro que ganha e sofre depressão depois que as cortinas se fecham, as bandeiras são baixadas e ele tem que deixar os seus palcos gramados. Alguns morrem de tristeza e solidão encharcados na cachaça, nas drogas e nas mulheres.
É por isso que o driblador é um inútil fora de seus domínios, um escanteio para o mundo real. Fora de seus campos, e bem ao estilo de Manoel de Barros, só sabe carregar água na peneira. Infelizmente, é um ser em extinção, um desnecessário, ainda mais nos tempos atuais, em que no futebol se corre mais do que se pensa. Não há lugar para o aplauso demorado e para a beleza apreciada em todos os seus detalhes. Pede-se para o driblador deixar as firulas, parar de enfeitar, seguir a jogada, tocar e até desejam que ele receba uma falta! Não há espaço para inúteis assim, que riam e que choram e fazem os outros chorarem e rirem, pois o lúdico e o poético foram chutados para fora de bicuda nesse novo jogo que se tem muito mais glamour e velocidade do que dignidade.