O Brasil, a economia e o direito de se autoenganar

Fim de ano é sempre motivo de balanços pessoais. Onde acertamos? Onde erramos? Será que estamos sendo honestos conosco mesmos? Trata-se de questões gerais necessárias para uma necessária introspecção para melhorar consigo mesmo e com os outros. Numa análise de conjunto entre economia e política vale o mesmo. Que 2010 não seja mais um ano de autoengano.

Que o bom senso e a inteligência não sejam ofuscados pelas mesquinharias da pequena política destituída de uma análise econômica de classe. O Brasil ainda não é o país do futuro. Talvez o seja para a banca nacional e internacional.

O bastião do neoliberalismo e do autoengano

Ganhamos o direito de sediar os dois maiores eventos esportivos do momento: os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo. Veio a dita crise financeira e em esforços louváveis da banda boa do governo e utilizando-se dos poucos minutos (somente poucos minutos) que o pessoal do Banco Central ficou na defensiva, aprovaram-se pacotes de estímulos fiscal e tributário, injetou-se dinheiro no BNDES e, em comparação com outros países, conseguimos reagir bem e amortecer os efeitos da crise sobre nosso país. Mas o Brasil só vai crescer 0,25% este ano. Ótimo diante da conjuntura, péssimo diante da estrutura. Mas lá se foi a oportunidade de aproveitar a fraqueza momentânea do inimigo principal interno para darmos um salto que – agora – poderá demorar anos, pois o time deles já está se recompondo rapidamente e colocando os desenvolvimentistas do governo em nova defensiva. Vide últimas declarações de Lula, Mantega e Paulo Bernardo. É um tal de manutenção de superávit primário de 3,3% para cá, combate a inflação como “algo sagrado” para lá. Que nação resiste a isso??? Correlação de forças ou falta de pulso e convicção de nosso presidente de um rumo não liberal? Antes de me julgarem de forma superficial (o que é uma tara de nosso meio), gostaria que refletissem a respeito. Por exemplo, este ano o Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M), indicou uma deflação no Brasil de 1,72% e Meirelles tem cantado e assoviado que ano que vem os juros entrarão em tendência de alta. Ninguém o segura. Pode ser que seja o vice de nossa chapa presidencial. Uma apostasia.

Fala-se em crescimento que pode variar entre 5% e 6% em 2010. Para ano de eleição comemoro e muito essa estimativa, ainda mais quando minha candidata (Dilma) enfrentará uma avalanche conservadora. Porém, saiamos da raia da coisa miúda e busquemos a chamada “verdade nos fatos”. A verdade nos fatos é que se compararmos com 2009 (crescimento quase zero), nosso país vai crescer sob bases criadas em 2007 e 2008, quando o crescimento pairou na casa dos 5%, mesmo assim se recuperando de anos ruins como 2005 e 2006. Seremos bombardeados por números sem fundo, de justificação de crescimento industrial “x”, sem que os trabalhadores que não lêem percebam que se trata de recuperação da atividade industrial e não novas capacidades produtivas instaladas (por exemplo, do oligopólio do setor automobilístico, que há mais de dez anos não aumenta sua capacidade produtiva, ao contrário, induz capacidade ociosa para manter nas alturas os preços dos ditos “carros populares”), que só podem surgir do aumento do investimento.

Nesse aspecto, um mar de autoengano afoga muitos. A mídia bancada pela banca internacional (The Economist, Financial Times) dá sua mãozinha, afinal como diz o maior economista brasileiro da atualidade, Delfim Netto, “somos o último frango com farofa do mundo”. Leia-se, o último bastião neoliberal do mundo. O grande bastião do autoengano. Diga-se de passagem.

Crescimento, consumo e inflação

O autoengano se espraia na não leitura da relação entre crescimento, consumo e inflação. Como os economistas de direita do Brasil são muito melhor formados e informados que os chamados de esquerda (com exceções como Belluzzo e Carlos Lessa), eles sabem trabalhar muito bem essa relação e montar armadilhas cíclicas ao Brasil. Podem perceber, cresce um ano, estagna o outro crescem outros dois e outra depressão em vista. É assim que a coisa funciona em colônias (com câmbio ao melhor estilo “Abertura dos Portos às Nações Amigas” de 1815), que só “crescem para fora” na medida em que bolhas especulativas sobre o dólar, mais a demanda externa (o café no século XIX e a soja e o minério de ferro hoje) elevam o preço das commodities. Assim crescemos nos últimos anos e formamos reservas cambiais que nos blindaram (juntamente com um espasmo desenvolvimentista de nosso governo), de certa forma, da crise financeira. Deve-se louvar uma mínima capacidade de planejar nosso comércio exterior pela ação do Itamaraty, bombardeada dentro e fora do governo.

Os investimentos do PAC e os programas de transferência de renda do governo federal e da política de salário mínimo do governo federal corroboram uma expansão do consumo. Mas, tudo isso não é um fim em si mesmo, pois se não acompanhadas de induções macroeconômicas de continuidade de políticas de criação de emprego e renda só se pode esperar o surgimento de “bolhas de consumo” expressas num aumento de inadimplência bancária e fiscal. Como os economistas do BC e da PUC do Rio sabem disso muito bem, tratam de cortar na raiz esse mal. De que forma? Elevando os juros e promovendo uma grande liquidez em dólar na economia brasileira, abrindo as comportas do mercado interno à industria estrangeira. Os esforços do governo em expandir o consumo popular são louváveis, mas necessariamente (com a manutenção desta política econômica) caem nesta armadilha antinacional e antipopular. Saímos do FMI, mas o FMI não saiu de dentro da gente…

Eis a essência reacionária da política econômica em curso. Assim, quando crescemos, não crescemos pela indústria de transformação (vejam os relatórios do Ipea e Fiesp a respeito) e sim pela competência do empresário agrícola brasileiro. Crescemos como a Argentina crescia na primeira metade do século XX (quando ela tinha sido a quarta economia do mundo): suprindo commodities ao centro do sistema. Ao que tudo indica parece que será assim que o Brasil se tornará a quinta economia do mundo. Destruindo a sua indústria e afogando a nação num mar de autoengano e execuções sumárias como as promovidas pela política de segurança do estado do Rio de Janeiro. Condenando engenheiros a montar traillers de cachorro quente em frente de escolas e universidades. Levando médicos e dentistas a prestarem concursos para fiscal da receitas, com salários de até oito vezes oferecidos em suas carreiras de origem.

O crescimento sustentado não é essa balela dos monetaristas em torno do “gasto sustentável”, sem riscos. A inflação é um mecanismo do sistema, temos de conviver com ela pelo menos até o um estágio avançado de socialismo, onde o planejamento e os meios de produção principais socializados possam jogar papel em sua plenitude. Somente neste estágio do desenvolvimento humano poderemos jogar a inflação na lata de lixo da história e até mesmo cogitar de proscrição a ciência da Economia Política. Enfim, a inflação deve ser vista como uma é parte do processo; uma contradição inerente ao mesmo; é inevitável no curto prazo quando a demanda se eleva acima da oferta. É uma lei econômica objetiva.

Somente nos marcos de uma visão de médio e longo prazos poderemos vislumbrar a superação deste problema. Isso munidos da espada da dialética, evidentemente. Superar esta contradição (inflação) e conviver com ele, não pode se dar sob parâmetros claramente antipopulares. Nós que respondemos pela nação no sentido popular da categoria devemos bradar que a solução do problema inflacionário só pode se dar no âmbito da expansão da oferta, na construção de capacidades produtivas, no fortalecimento de um setor privado (devemos deixar de lado esse preconceito esquerdista contra o empresário privado, pois somos um país capitalista e é dessa forma que temos de tratá-lo, gostemos ou não) em detrimento do Estado em certos setores (infraestruturas, por exemplo). Somente nos marcos da expansão do investimento e de um Banco Central que trabalhe no sentido de viabilização de um capital financeiro nacional pronto para sustentar esse esforço é que as coisas vão caminhar de forma sustentada, no sentido progressista do termo.

A estratégia e o “ferrorama”

Existe uma série de determinações neste processo a serem exploradas. A meu ver, a principal delas é uma leitura ampla do quadro político, incluindo o chamado PIG (Partido da Imprensa Golpista). Outra é o pleno e contínuo exercício de uma visão estratégica que contemple uma visão de médio e longo prazo da economia brasileira. Algo além do imediatismo inflacionário e do relativismo de direita que acomete e leva muitos ao autoengano letal de se ver um presente e um futuro que não existe, a não ser na mente e nos sonhos dos agraristas da década de 1920, notoriamente os monetaristas “modernizantes” de hoje. Não posso deixar de expor a urgente e necessária mudança de visão das esquerdas com relação à economia e à ciência da Economia Política. Tudo é motivo para não se estudar economia, inclusive aludir-se a uma chamada “questão cultural” ressuscitando justamente um Antonio Gramsci quando na verdade somente o desenvolvimento econômico e social faz o homem ter uma visão crítica de si mesmo, impulsionando-o a transformar a realidade, e quando para o próprio Gramsci “a verdade é revolucionária”. E é a verdade acima de quaisquer juízos e coisas que procuro e persigo. Assim tento aprender com Lênin, I. Rangel e A. Mamigonian. Mesmo a descontento da pequena política travestida de “grande política”.

A popularidade de nosso presidente e a ampliação política de nosso campo não podem ofuscar uma visão crítica de nossa economia. Sei que pedir para alguns mestres do autoengano estudar economia pode parecer algo ridículo e “economicista”. Mas, como alertou certa vez Ignácio Rangel a Miguel Arraes – e parafraseando Lênin e Clausewitz –, “não vamos muito longe em matéria de política sem uma teoria econômica decente”. Vide o governo progressista da Venezuela e sua inépcia econômica, capaz de levar ao blecaute o quarto maior produtor de petróleo do mundo. As coisas não se sustentam pela pura política. Daí Marx, ter feito sua famosa “Crítica da Economia Política”.

Voltando à Terra, o “x” imediato do problema, a meu ver, depende da eleição de Dilma Roussef. É neste campo político que se encontra a esteira do progressismo (às vezes acrítico, é verdade) como um dos lados desta unidade dos contrários refletido na superestrutura de poder no Brasil. Eis a condição sine qua non do salto de qualidade. Concomitante a isso, devemos estar prontos para argumentar em favor de um relaxamento das metas de inflação, dentro de uma banda que poderá variar dos 6% a 7%, viabilizando assim um crescimento capaz de atender as demandas sociais represadas (com crescimento de 5% somos capazes de atender somente as pessoas que entram no mercado de trabalho anualmente). Este aumento da banda inflacionária conduzirá, necessariamente, a uma política de juros e câmbio capaz de atender os interesses nacionais, revertendo a nosso favor o jogo do “desenvolvimento desigual e combinado”, com ampliação da indústria, empresas nacionais fortalecidas ante o “salve-se quem puder da concorrência internacional” e colocando o setor primário de nossa economia em seu devido lugar na divisão social do trabalho.

Por fim, não confundamos exercitar uma visão estratégica de país com um brinquedo de tipo “ferrorama”. Quero dizer que é um despautério sacar R$ 30 bilhões do tesouro num brinquedo tipificado num trem-bala, quando um pouco de conhecimento da realidade que nos cerca clarifica um potencial incrível de crescimento ferroviário, inclusive com aumento de velocidade, a partir do que já está instalado em nosso país, porém em processo de destruição pela via de importação de trens e locomotivas de segunda e terceira categorias, seja da China, seja dos Estados Unidos.

“Penso, logo existo”, já nos lembrava um dia Descartes. Não estamos proibidos de pensar, muito pelo contrário, nunca foi tão necessário isto. O Brasil clama pelo pensamento. Somente pelo pensamento crítico e firme e munido de uma grande responsabilidade política é que nosso país poderá alcançar seus objetivos a partir do debate de projetos de médio e longo prazo, acumulando forças e proscrevendo uma era em que a “grande política” era um mero embate de projetos partidários. Eleger Dilma pode ser um bom começo. Um bom combate.

Feliz 2010 ao nosso Brasil!!!

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor