Notas sobre um “debate rastaquera”
O ofício de observador da mídia frequentemente nos obriga a enfrentar um dilema desagradável: simplesmente ignorar ou, mesmo a contragosto, comentar matérias que, embora patéticas, reverberam e acabam por provocar, num circulo reduzidíssimo da elite leitora dos jornalões pátrios, o que Alberto Dines chamou com propriedade neste Observatório de "debate rastaquera" (ver aqui).
Publicado 02/03/2010 18:36
Refiro-me à repercussão de frases ditas por um assessor do governo em relação à má qualidade e à difusão de valores culturais da programação de canais americanos transmitida na TV a cabo.
Merece especial atenção o artigo "Esterco político" (para assinantes), dado na página 2 da Folha de S.Paulo (sábado, 20/2), com chamada na primeira página sob o título "Assessor de Lula não compreende o que é liberdade". Na página interna somos informados de que o referido assessor é um dos sobreviventes dos "bolsões de intolerância e incompreensão sobre o que é exatamente liberdade de expressão". [Ver, a propósito, "TV a cabo em debate – Que esterco é esse?"]
Diversidade cultural
Deixando de lado o fato de que o significado da palavra liberdade tem servido de disputa desde os tempos da "guerra fria" e sobrevive ao fim da bipolaridade ideológica mundial marcada pelo "colapso do comunismo", uma das curiosidades do "debate rastaquera" é que nenhum dos experts ouvidos se lembrou de mencionar a natureza particular de bens e serviços culturais – especialmente o cinema e o audiovisual.
Esta natureza particular foi reconhecia em disputa entre os EUA e a França – ganha pelos gauleses – e iniciada na Rodada do Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), em 1994, quando se adotou o conceito de "exceção cultural". O mesmo princípio foi incluído, por exigência do Canadá, no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), também em 1994.
O tema foi levado para o âmbito da Unesco e lá, depois de anos de debates, surgiu a Convenção sobre a proteção e a promoção da Diversidade das Expressões Culturais, adotada pela Unesco em 2005 e subscrita pelo Brasil através do decreto legislativo 485/2006. A Convenção substituiu o conceito de "exceção cultural" pelo de "diversidade cultural".
Na introdução do documento, dentre outros tópicos, está escrito:
"Constatando que os processos de globalização, facilitado pela rápida evolução das tecnologias de comunicação e informação, apesar de proporcionarem condições inéditas para que se intensifique a interação entre culturas, constituem também um desafio para a diversidade cultural, especialmente no que diz respeito aos riscos de desequilíbrios entre países ricos e pobres."
O reconhecimento de que bens e serviços culturais – especialmente o cinema e o audiovisual – possuem uma "dupla" natureza, é o que fundamenta a existência de políticas públicas culturais de proteção e estímulo às culturas locais, regionais e nacionais. Isso pode significar, como já ocorre em vários países do planeta, a existência de quotas de difusão para cinema, televisão e rádio, além de políticas de subsídio financeiro à produção e distribuição de produtos culturais nacionais.
Não poderia ter sido este o quadro de referência maior dentro do qual se colocariam as frases do assessor do governo, pronunciadas em seminário sobre política externa?
Estreitando o espaço de debate
O "debate rastaquera", no entanto, simplifica questões complexas e só enxerga o seu lado da questão. Joga qualquer fala – independente de quem diga o quê e em qual contexto – na vala comum das acusações diárias a possíveis ameaças "autoritárias" a uma "liberdade de expressão" que, na prática, só se materializa para aqueles pouquíssimos que têm acesso à grande mídia. Aproveita qualquer deixa para reduzir ainda mais os estreitíssimos limites do quase inexistente debate cultural no nosso país.
O "debate rastaquera", infelizmente, nos conduz aos umbrais da intolerância, temperada pela hybris que contamina boa parte dos colunistas de nossos jornalões.
Texto publicado originalmente no Observatório da Imprensa