Nossa Mestra Passional

Uma homenagem sincera e saudosa a uma mestra apaixonada, cujo compromisso com a justiça social e a educação, marcado por seu caráter enfático e explosivo, deixou um legado inesquecível.

A economista luso-brasileira Maria da Conceição Tavares morre aos 94 anos | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Sábado, dia 8. A notícia abala a todos. A querida mestra nos abandona. Uma vida que marcou, comprometida com o desenvolvimentismo, com o planejamento, com a formação de gerações, com a coerência de posicionamentos.

Domingo, dia 9. Muitos se manifestam. Mostrando seu apresso e destacando suas virtudes. Homenagens muito justas a quem dedicou a vida a uma causa, a uma luta por um mundo melhor.

A quem compreendeu o que é Economia. Nas suas palavras, “uma economia que não se preocupa com justiça social é uma economia que condena os povos a isso que está acontecendo: uma brutal concentração de renda e riqueza, o desemprego e a miséria.”

Sinto falta. Nada vejo sobre uma de suas características marcante, pelo menos para mim. Que todos conheciam, que todos ressaltavam, até ironicamente. A sua forma de luta, o seu caráter enfático e explosivo.

Não deixava passar nada que discordasse sem uma boa briga, sem um posicionamento enérgico. Fui seu aluno no início da década dos 1980 e isso me marcou. Quatro casos que presenciei.

Uma aula de Economia urbana. A luso-brasileira convida o maior especialista do país, à época, Carlos Lessa. Dia marcado, o professor, trazendo quatro ou cinco livros, começa a explanação.

Em certa altura, Conceição discorda de uma afirmativa e grita: “Lessa, estas a falar merda!!”. Impassível, o professor, pega seus livros, põe debaixo do braço e sai pelos corredores do galpão indo embora.

A Mestra atrás pedindo, “volta Lessa, volta Lessa.” Ele não voltou.

Era orientando do professor Belluzzo. Fui entregar um capítulo da Tese e um artigo. Perto do almoço, sou convidado para ficar. À mesa, o mestre e sua esposa, minha amiga Fátima, além de Conceição.

Era 1984, ano em que José Serra exercia o cargo de Secretário de Planejamento de Montoro. Na minha inflexibilidade ideológica, a certa altura, comento do caráter discordante de algumas medidas tomadas. Devo ter chamado de neoliberais, não sei se na época se usava o termo. A Mestra se apóia no forro da mesa para vir ao ataque. Ela gostava muito de Serra.  Sem se mexer, Belluzzo declara, “Conceição, está na minha casa, vamos discutir racionalmente.” Volta atrás, se senta e didaticamente explica porque não era bem o que eu pensava. Acabo concordando com ela.

Tinha dois orientandos queridos, polemizavam sobre a dinâmica da macroeconomia e sua relação com os aspectos micro. Tinham estilos diferentes, mas ela adorava os dois e incentivava seu debate.

Em uma aula palestra, um deles, para defender sua hipótese, ousa discordar do que foi dito pela Professora. Instintivamente, ela lhe dá um chute na canela, deve ter doído, e diz: “É o cú da mãe Joana!!”; Percebendo o incômodo causado, o abraça e afaga. Era assim, rapidamente se arrependia e não tinha vergonha de se desculpar.

Dia de seminário. Faustão e eu éramos os apresentadores. A luso-brasileira era pontualíssima, não admitia atraso. O tema era o debate entre Friedman e Tobin. Conceição tinha voltado dos Estados Unidos onde foi aprofundar o tema. Estudamos quinze dias e pouco entendemos, para não dizer nada. Os céus conspiraram a nosso favor.

A Professora vinha do Rio. Parava em Congonhas e pegava um carro para Campinas. Dia de chuvas torrenciais. O aeroporto fecha e ela fica angustiada. Telefona para uma colega, Mônica, que trabalhava com o tema e pede para que começássemos que tentaria chegar. Começamos mostrando nossa falta de compreensão, auxiliados pela colega paciente que nos corrigia.

Hora e meia depois ela chega. Esbaforida. Apaga a lousa deixando os gráficos e pede para  que nos sentássemos. Vai dizendo. Pois é, como eles já falaram estes gráficos mostram isso. Tudo diferente do que pensávamos. E, com uma grande clareza nos fez entender o tema. Quietos, só acenávamos com a cabeça, não sei se para a explanação ou para os deuses que nos protegeram.

Encontrei a Professora algumas vezes depois. Em palestras, mas principalmente, em Brasília quando lá exerci um cargo no Governo Lula. Sempre com um entourage ao redor, sequiosos de ouvi-la. Nunca deixei de ler seus textos, de acompanhar suas polêmicas. Infelizmente não tive mais contatos diretos. Tenho certeza que os casos vividos devem ser vários e muito temos a aprender com eles.

Essa era a nossa Mestra. Sempre passional, sempre envolvida emocionalmente com o que acreditava. Didática e comprometida, sem negar seu caráter explosivo, mas carinhoso. Admirarei sempre seu jeito de enfrentar o mundo, sua forma de luta.

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