No Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+

O V Encontro de Travestis e Transexuais do Nordeste, de 13 a 16 de agosto de 2008, foi o primeiro a se realizar no Recife. Os temas desse encontro bem que poderiam aparecer em qualquer reunião de cidadania: educação, saúde, segurança e trabalho

Nesta sexta-feira 28 de junho é celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+.

A permanência do ódio contra homossexuais, bissexuais, trans e LGBTQIAPN+ em geral, me faz buscar uma reportagem que realizei no Recife sobre um Encontro de Travestis Transexuais do Nordeste. Acredito que as revelações das entrevistas ali em 2008, por infelicidade ainda permanecem. Recupero o texto a seguir.  

O V Encontro de Travestis e Transexuais do Nordeste, de 13 a 16 de agosto de 2008, foi o primeiro a se realizar no Recife. Não que faltassem outros encontros do gênero, nas ruas noturnas da cidade. Mas à luz do dia, em hotel confortável de Boa Viagem, com apoio do poder público, foi o primeiro.

Os temas desse encontro bem que poderiam aparecer em qualquer reunião de cidadania: educação, saúde, segurança e trabalho. Para travestis e trans, no entanto, esses temas sofreram uma tradução mais específica: “redução das infecções do HIV/Aids, Hepatites, DSTs em Travestis, Transexuais do Nordeste, promovendo autoestima das mesmas; trabalhar com lideranças do movimento de Travestis e Transexuais do Nordeste em Educação, Saúde, Segurança, Trabalho, Mídia e Diversidade”.

O contato com as participantes foi conduzido por dirigentes da Gestos e Amotrans, ongs que entre outras lideravam a reunião. Falei-lhes do respeito à pessoa que seria buscado. Então se apresentaram Nena, Flávia e Gleiciane. Se o leitor me acompanha, fará algumas descobertas.

A primeira delas é que há sinais na luta de travestis pela sobrevivência, que os de fora não notamos. Agitar a cabeça, jogando os cabelos longos sobre o ombro, por exemplo. Nas mulheres de origem biológica e definição, isso pode ser instinto de fêmea para seduzir, pura armadilha da feminilidade. Em travestis, não. É uma afronta dirigida à concorrente ou à intrusa. Marcação de terreno. “Desapareça! O que você quer?!”, gritam em silêncio com o jogar de cabelos nos ombros.

A segunda descoberta é que seus nomes não são simples nomes de guerra. Os nomes são as suas pessoas. Mais, o que não podíamos sequer adivinhar: o sexo macho de nascimento, para elas, é larva. Porque a sua plenitude é ser mulher. Daí que prefiram, exijam ser chamadas sempre com todos os substantivos e adjetivos no feminino. E reescrevam a definição de gênero: não são de dois gêneros, os ou as travestis, como está no dicionário. São as travestis. As meninas. As senhoras, damas, princesas ou senhoritas. Sem a menor sombra de ridículo ou ironia. Nasceram assim e são assim, um conflito vivo. Nada de Almodóvar. Nada de glamour.

Nena Patrícia é uma jovem morena, com a pele a rebentar como uma adolescente. Tem 29 anos e aparenta ter menos. Daí que se pode acreditar na idade que declara. Alimenta, como todas, o sonho de encontrar um marido, de preferência carinhoso, trabalhador, fiel.

– Mas vai ser tranquilo arranjar um marido, você tendo o sexo masculino? Pergunto.

– Vai, até já passei pela experiência, convivi com um rapaz por quatro anos. Mas não foi muito boa, foi até trágica, porque no final ele era muito violento, me batia. Ele me ameaçava, que ia me matar, que ia me fazer horrores. Ele era muito ciumento, obsessivo, possessivo. Mas não coloquei na cabeça que todo homem vai ser assim. Espero um dia encontrar um bem diferente.

Passo então para Gleiciane. Ela é uma liderança natural, desconfiada e esquiva como poucas. É a presidente da ong Amotrans. Tem 38 anos, a pele clara, e conta que vai fazer o vestibular de gastronomia.

– Você se descobriu homossexual com que idade? pergunto.

– Com treze anos. Mas na infância, eu me achava mais menina.

– Qual o divisor, qual o limite, de deixar de ser homossexual para ser travesti?

– Isso aí é uma questão de cabeça. Desde criança eu me identificava como mulher. A homossexualidade é diferente. Travesti é aquela que se veste 24 horas, que se caracteriza como mulher, que tem corpo de mulher, toma hormônio…

Flávia, a terceira a ser ouvida, está impaciente, quer dar a sua opinião. Aparenta ser a mais madura. Peço-lhe que se apresente, e cometo a indelicadeza de lhe pedir a idade.

– Sou Flávia Desirée, fiz agora no dia 7 de agosto 38 anos.

– Desirée… Por que esse Desirée, Flávia?

– É porque é um sobrenome francês, cheio assim de significação… é um sobrenome mais forte. E sou autônoma, trabalho com artesanato.

– Que tipo de artesanato?

– Trabalho com máscaras, penas, cabaças, cerâmica. Trabalho com todo tipo de material que eu possa transformar. Pego as matérias-primas e transformo em arte.

– Assim como você fez transformação no seu próprio corpo?

– Sim, fiz. Fiz transformação injetável. Eu passei do hormônio para o silicone. Eu tenho o rosto siliconado, tenho os seios siliconados, tenho os quadris siliconados. Toda feita com silicone.

Das três, ela é a que possui mais experiência. Ao lhe perguntar se já sofreu violência, ela me devolve:

– Qual delas? Porque eu já fui sequestrada, já fui atirada (empurrada do alto), já me levaram pra mata, pro Lixão da Muribeca, para uma praia deserta, onde me fizeram tirar a roupa… e tudo isso tanto dos marginais quanto da polícia. Em várias cidades. Rio, São Paulo, Vitória…

– Em qual delas a barra é mais pesada para a travesti?

– Rio de Janeiro e São Paulo. É pior do que o Recife. Rio e São Paulo é mais problemático. Eu não sei se era por causa da época, década de 80, mas quando eu comecei a viajar, lá as coisas eram muito mais violentas. Em São Paulo muitas travestis se jogavam, se atiravam do viaduto, quando viam o carro da polícia. Muitas se escondiam, a polícia caçava com cachorro, dava choque elétrico…

Volto para Nena Patrícia. Das três é a que aparenta ser a mais frágil, ou a que procura se adequar a um ideal leve, de louça, a que um vento mais bravo poderia quebrar.

– Em um mundo ideal, você seria travesti? Pergunto.

– Seria. Se eu renascesse, voltaria a ser travesti. É como diz Caetano Veloso, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Apesar de tudo.

– Mas você tem mais dor ou delícia de ser o que é?

– É…. (Silêncio) É uma delícia assim, porque eu sou o que sou, a minha pessoa, a minha expressão. Acho que é mais… é muita dor, mas também não poderia ser de outra forma, porque eu não saberia me reprimir. Seria mais frustrante viver reprimida, sem me expressar.

No que Flávia Desirée muito discorda.

– Eu mesma já disse à minha mãe: “quando um dia eu morrer, eu não quero reencarnar no corpo de uma travesti mais não. Porque eu não aguento mais”. É uma vida muito sofrida, porque todo o mundo apedreja. Uns abraçam, outros apedrejam. Os que abraçam a gente são muito poucos. Os que apedrejam são muitos. A gente cai e se levanta.

– Então não existe uma escolha de ser homossexual ou travesti.

– Não. É um sofrimento. E ao mesmo tempo é aquela coisa: destino. Porque quando a gente nasce, a gente não sabe. A criança, quando a mãe gera, ela não sabe o destino do filho. E ele vai se desenvolvendo. Até você saber o que o seu filho vai ser, já tem corrido o tempo.

O que é uma verdade, travestida de ameaça. Pior, travestida em fatalidade. Como numa predição de tragédia no palco. Por isso volto a Nena Patrícia, quem sabe se ela, mais gentil, não teria um conselho de coração a transmitir, como em antigos programas de rádio. Ao que ela responde:

– Eu diria às pessoas que olhassem as diferenças como uma coisa normal. Porque nós somos diferentes, mas por outro lado somos iguais, em direitos, a todo o mundo. Somos cidadãs, somos seres humanos, pagamos impostos. Somos diferentes em nossa expressão, mas não somos diferentes em direitos e obrigações.

Faço a mesma pergunta a Flávia Desirée, que severa responde:

– Eu daria um conselho à sociedade: que apoiasse as causas das minorias, das travestis que vivem nas ruas sofrendo, sendo humilhadas, sendo espancadas. E apoiasse as travestis que vivem sem recursos, sem canto onde se abrigar, que moram na rua, feito mendigo. Isso não é vida. Nenhuma delas nasceu pra ficar jogada na beira de uma esquina, esperando a morte chegar. Isso é o que a gente vê, e a sociedade bota um pano pra cobrir, que nem a justiça, porque dizem que a justiça é cega.

Ao fim, ela pede que na foto sejam evitados os seus pés. Sabemos por quê. Não ficaria bem Desirée mostrar os pés feridos e pouco inchados.

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