Memórias sobre o Araguaia: Sob a mordaça
Publicado 01/03/2011 12:30
Foi nos porões do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), em Brasília, em meados de 1972 que meus pais, Paulo Fonteles e Hecilda Veiga tomaram conhecimento da guerrilha no Sul do Pará.
Ante o grito das torturas e a canção "Esses moços, pobres moços" de Lupicínio Rodrigues – usada para abafar a tormenta dos calabouços da infâmia e da tortura perpetradas pela Gestapo tupiniquim – foi que rapidamente correu entre os presos políticos, através de formas que só eles conheciam, da chegada naquele famigerado centro de tortura de vários lavradores presos nas currutelas e matas da região do Araguaia. Um deles, Otacílio Alves de Miranda, o "Baiano", pude conhecer em 2009 em meio aos ações do Grupo de Trabalho Tocantins do Ministério da Defesa em Marabá (PA).
Tais prisões expressaram a campanha inicial de Cerco e Aniquilamento das Forças Armadas naquela remota região, numa das últimas frentes de expansão da sociedade brasileira para combater a maior rebelião armada do Brasil Rural, segundo afirmaria anos depois o General Viana Moog.
A emoção de saber da insurreição armada nos sertões araguaianos tomou conta do coração e da consciência daqueles que estavam desterrados e meus pais foram inundados, como todos que resistiam as bestas-feras do PIC, pelo exemplo da insurgência no Araguaia.
Um preso político, durante a ditadura militar brasileira, era como um artesão da esperança que retirava da escuridão do pau-de-arara e da cadeira-do-dragão o proibido anseio de liberdade. Minha mãe diz que naqueles dias de cárcere aprendeu as canções das Forças Guerrilheiras do Araguaia com as gentes aprisionadas nas matas do Pará.
Sobrevivente das tenebrosas masmorras do estado terrorista dos generais, Paulo Fonteles, como muitos outros, é enquadrado pelo espúrio Decreto-Lei 477 que retirou-lhe o direito de retomar de imediato à universidade e por três anos foi trabalhar em seringais da família, onde conheceu a dura lida do seringueiro e do camponês, recobrando as forças para retomar a atividade militante.
Estava em curso no país a luta pela Anistia e iniciava-se no ABC paulista a fundamental jornada de 1978-1980 que representou para o Brasil a força da classe operária que revelou na cena política brasileira a figura emblemática do metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva.
A ditadura militar, que aprofundou a subordinação do Brasil aos interesses do imperialismo, particularmente o norte-americano e eliminou arbitrariamente as limitadas conquistas sociais e democráticas, assistia atônita o reforçamento de um movimento democrático de massas que desaguaria, em 1984, nas febris multidões que nas praças e nas ruas exigiam as Diretas-Já.
O fato é que a partir da segunda metade da década de 1970, derrotada fragorosamente nas urnas nas eleições de 1974 pelo MDB, legenda que abrigava quase todo o conjunto de forças oposicionistas ao regime, a mais elevada e reacionária oficialidade militar não conseguia esconder a preocupação de que exemplos dos acontecimentos das matas paraenses pudessem ressurgir, inclusive na própria região deflagrada.
Os donos do poder de então tinham plena consciência dos prejuízos que as Forças Guerrilheiras do Araguaia tinham perpetrado contra o regime e não foi por obra do acaso a tristemente famosa Chacina da Lapa que liquidou parte expressiva da Direção Nacional do PC do Brasil, entre eles Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, em 1976.
Nas circunstâncias das comemorações do Ano Internacional da Mulher, em 1975, a repressão política não conseguiu coibir que um pequeno grupo de mulheres lançasse o primeiro "Manifesto pela Anistia" e o Movimento Feminino pela Anistia e Liberdades Democráticas (MFPA).
A bandeira da Anistia, que deveria ser "ampla, geral e irrestrita" foi como um vento que articulou os setores democráticos da sociedade brasileira até então sufocada pelos grilhões do despotismo militar. Diante de tal situação os presos políticos se levantaram nos presídios e o cárcere se tornou importante irradiador de agitação pelas liberdades públicas e pelo fim do Estado de exceção.
Muitas das informações da luta armada no Brasil, principalmente do Araguaia, tornaram-se públicas a partir dos relatos dos presos políticos, o que ampliou o impacto das informações para fora das prisões, ensejando a organização dos setores mudancistas. Figuras de proa da política brasileira, como o Senador Teotônio Vilela, deram grande visibilidade aos clamores dos que estavam em prisões políticas.
O fato é que o MFPA desaguou na criação do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), o que permitiu a elevação da luta democrática no Brasil. Mesmo com a promulgação da limitada Lei de Anistia, em 29 de Agosto de 1979, o regime não pode segurar a radicalização daquele processo que anunciava a exigência do esclarecimento sobre o paradeiro dos desaparecidos políticos do regime militar.
Os setores democráticos da sociedade brasileira, inclusos aí os familiares de desaparecidos políticos passam a se organizar e realizam protestos e congressos, procurando obter o esclarecimento do Governo Federal e principalmente tornando público para a sociedade brasileira os motivos da luta no Sul do Pará. Conseguiram galvanizar o apoio de diversas entidades profissionais, dentre elas destacavam-se a Associação Brasileira da Imprensa (ABI) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).