Maid: a vontade por sobreviver

A história é opressiva e ao mesmo tempo cativante sobre a jovem e muito sensível mãe, que sonha chegar a uma Universidade e se tornar escritora. No entanto, da parte de seu parceiro sofre abusos e violências

Série "Maid" I Foto: Divulgação

O mês de novembro é marcado por importantes chamados a lutas intensas contra as violências de gênero e de raça. O 20/11, Dia Nacional da Consciência Negra, referenciado na data da morte de Zumbi dos Palmares (no final do século 17), alude às batalhas dessa liderança negra pela sobrevivência e resistência contra a opressão e a tirania dos/as escravizados/as; e que hoje assinala as lutas por liberdade, direitos de negros e negras, contra o racismo estrutural. Cinco dias depois, em 25, é o Dia Internacional do enfrentamento da violência às mulheres.

“Maid” é uma minissérie recente, com uma dezena de episódios, que estreou em 1º de outubro e já está entre as 10 produções mais assistidas da Netflix. (1) Assisti avidamente, de uma só vez, durante o dia e até a madrugada, olhos bem abertos até o amanhecer. Aborda temática atualíssima, tratada com intensidade por direção e elenco, que nos faz aprofundar a reflexão sobre o quanto a sociedade brasileira é patriarcal e neocolonizada (como também em muitos países). A série conta a história real de Stephanie Land, autora da autobiografia intitulada “Maid: hard work, low pay and a mother’s will to survive” (“Faxineira: trabalho duro, salário baixo e a vontade de uma mãe de sobreviver”), um dos livros mais vendidos segundo o New York Times.

A história é opressiva e ao mesmo tempo cativante sobre a jovem e muito sensível mãe, que sonha chegar a uma Universidade e se tornar escritora. No entanto, da parte de seu parceiro sofre abusos e violências. Por causa disso, afasta-se do agressor com a filha Maddy (Rylea Nevaeh Whittet), de pouco mais de dois anos, uma personagem infantil e encantadora, para protegê-la. Alex (Margaret Qualley) trabalha como faxineira para sobreviver longe dos frequentes abusos psicológicos de seu companheiro Sean (Nick Robinson), homem instável e alcoolista. Retrata uma realidade dos Estados Unidos, mas também muito vista no cenário brasileiro das relações entre homens e mulheres.

A cidade dos episódios é Port Hampstead, nos EUA (na realidade, tudo foi filmado no Canadá). Alex foge de um trailer com Maddy, localizado em um lugarejo afastado, utilizando o carro, que se tornara sua morada por alguns dias, até perdê-lo por conta de um acidente na estrada. Sem o carro, aflita, ela se torna uma sem-teto.

Em cada episódio, o machismo e os abusos vão se revelando, tanto na relação com seu ex- companheiro, como com seu pai que foi agressor de sua mãe, Paula (Andie MacDowell atriz que, aliás, é a mãe na vida real da atriz que interpreta Alex), como de companheiros de sua mãe, marcando de forma intensa a vida de Alex. Ao longo da série, toma-se conhecimento do quanto Paula foi vítima crônica de violência doméstica, mas ela tenta negar, ou disso nunca tomou efetiva consciência, agarrando-se a uma fantasia de relações amáveis.

A relação de Hank, pai de Alex, também é refletida com apreensão e aflição por parte de Alex, que, ao contrário do tratamento com a filha, apoia as atitudes humilhantes e violentas de Sean, como que justificando as atitudes abusivas. Podemos dizer que ali está representado o que tem sido estudado sobre masculinidade tóxica, de como se espera que comportamentos específicos de indivíduos do sexo masculino exista a valorização da força física, ou de atitudes violentas e repressivas, tudo impactando negativamente a saúde das pessoas, em especial das mulheres. Essas imposições costumam ser repressivas e ligadas a comportamentos violentos, até enaltecendo a brutalidade e transformando as emoções em um sinal de fraqueza, próprias do pensamento machista, no qual o “sistema hierárquico” de gêneros, ou seja, o masculino prepondera sobre o feminino. Por isso, afetam a vida dos homens e das mulheres em diversos aspectos e, inclusive, são capazes de perpetuar casos de homofobia, estupro e misoginia. Assim é com Alex, com sua mãe, com outras mulheres que também sofrem violências diversas, inclusive sendo amparadas pelo Estado através de um abrigo para mulheres em situação de violência, que Alex acessa por duas vezes através da intervenção do Serviço Social. A cumplicidade do pai de Alex com Sean é muito nítido de o quanto o acordo garante a proteção de Sean – o menino frágil e alcoolista, em detrimento da filha e da ex- mulher. É um dos elementos centrais na série a batalha judicial e burocrática que envolve Alex, em torno da guarda da fiha Maddy, um evidente gerador de estado depressivo.

Série “Maid” I Foto: Divulgação

Embora o filme trate de abusos contra uma mulher branca, muitas e muitas mulheres negras são afetadas por violências físicas, psicológicas, institucionais. É o caso da responsável pelo abrigo para mulheres, a simpática e amável Denise (BJ Harrison), bem como Regina (Anika Noni Rose), dona da primeira mansão em que Alex realizou faxina; com Regina, apesar das relações conflituosas iniciais, tornam-se grandes amigas.

A violência doméstica e familiar contra mulheres é um fenômeno histórico e cultural, que não respeita raça/etnia, credo, orientação sexual/identidade de gênero, classe social ou nível educacional. No entanto, as mulheres e meninas negras sofrem com mais intensidade pelo componente do racismo estrutural de nossa sociedade. Neste 20 de novembro, dia da consciência negra, o movimento social e feminista mais do que nunca deve realizar todo o esforço para manifestar sua irrestrita solidariedade ao povo negro, mas fundamentalmente às mulheres negras, reconhecendo sua longa história no mundo e em nosso país, fazendo a denúncia da violência racista e misógina do capitalismo em aliança com o patriarcado. Nosso país concentra a segunda maior população negra do mundo, atrás somente da Nigéria. O Brasil apresenta um quadro de profundas desigualdades que atingem a população negra, em particular seu contingente feminino, resultado de histórica opressão e sofrimento imposta pelo colonialismo escravagista.

Essa série provoca muitas reações, desde o refletir sobre a vida cotidiana de violências de muitas mulheres e meninas, como da ausência de politicas públicas para atendimento, mas fundamentalmente sobre o quanto a mentalidade patriarcal está entranhada nas instituições, na subjetividade e de como talvez em todo o planeta muitas mulheres são socorridas por outras, formando redes de proteção e de apoio. A mensagem de esperança ao final é emocionante. Alex protege a filha Maddy, a leva a uma montanha para ver a cidade e a nova vida que está por vir. É comovente a jornada de Alex em não deixar a desesperança tomar conta, mesmo em momentos de profundas dificuldades. A frase de Lênin é indispensável quando nos diz para acreditar em nossos sonhos: “É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles.”

Ficha Técnica: Maid – 1ª Temporada (Original Netflix)
Título Original: “Maid”
Duração total dos episódios: 545 minutos
Ano de produção: 2021
Dirigido por: John Wells, Helen Shaver, Nzingha Stewart, Lila Neugebauer, Quyen Tran

Referências:
(1) https://nosmulheresdaperiferia.com.br/maid-3-cenas-para-entender-a-solidao-de-uma-vitima-de-violencia/

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